DO R7 - 10/7/2017 às 00h10
Ex-traficante fala sobre consumo e venda de drogas na Cracolândia: "Vi umas 80 pessoas morrerem ali". De vendedor a consumidor de crack, homem avisa: "Não tenho orgulho. Isso acabou comigo"
Peu Araújo, do R7
Alameda Dino Bueno com rua Helvétia, local em que funcionava o fluxo da Cracolândia em agosto de 2016Avener Prado/Folhapress
A reportagem do R7 entrevistou, com exclusividade, um ex-traficante e usuário da região da Cracolândia. O homem de 35 anos, que, por segurança, não será identificado, conta como começou sua trajetória no crime, fala sobre o primeiro trago no crack e explica como o tráfico funciona na região da Luz. Conta ainda sobre as execuções dentro do “fluxo”, policiais corruptos, fontes de abastecimento de pedras.
Vindo do interior de São Paulo, ele conta que chegou à capital há pouco mais de 10 anos com o objetivo de se estabelecer no tráfico de drogas. Ganhou a confiança do PCC (Primeiro Comando da Capital), a quem se refere sempre como "os irmão", e revela que mesmo usando crack mantinha o “emprego”. Ele conta ainda que praticava furtos e até contratou “funcionários” para ampliar os negócios. Segundo ele, sua freguesia incluía até pessoas famosas.
Longe das drogas há pouco mais de quatro meses, o homem tem uma luta diária de se manter distante do consumo e do crime. Para isso ele segue um mantra do que não deve mais fazer. “Voltar para Cracolândia e usar droga de novo.”
Leia o depoimento:
"A chegada ao fluxo
Eu resolvi tentar fazer minha vida aqui em São Paulo. Quando eu cheguei à Cracolândia era na rua do Triunfo com a rua dos Gusmões. Comecei a ficar, pegar amizade com um aqui outro ali. Como eu não tinha onde ficar acabei morando dentro do fluxo.
Eu tive oportunidade com o pessoal que vendia com os ‘irmão’, até com os próprios usuários. O pessoal via que eu era um cara de boa, não pisava na bola, era um cara correria, não tinha medo, debatia com a polícia. Montei minha barraca, tive contato com pessoas fortes e me deram o primeiro pacote pra vender. Graças a Deus eu nunca dei milho com eles. Eu sempre fui um cara honesto com os ‘irmão’.
A negociação
Eles me davam 100 pedras, 40 eram minhas. Eu tinha que dar 600 reais pelo pacote. A pedra naquela época era do tamanho da metade de um dedo, era a Hulk ainda. Aquele crack verde que você dá um trago e fica fora de si.
Eu fazia meus 400 reais com a minha parte, comprava 300 de drogas e colocava um moleque pra trabalhar pra mim. Eu já comecei a fazer minha história. Conversei com os ‘irmão’ e foi tudo normal.
Ampliando os negócios
Eu vendi pedra até pra famoso. Tinha um que vinha aí, dava o trago dentro da Captiva e jogava tudo fora, o cachimbo, bic. Eu acabei formando uma freguesia.
Quando mudou de endereço [foi para a região da alameda Dino Bueno com a Rua Helvétia] eu já tinha mais envolvimento. Eu era mais respeitado, fiz a segurança dos caras nas barracas.
Andava armado.
Eu olhava as barracas pros ‘noias’ [usuários] não mexer. Ficava de olheiro também. ‘Ó a loira’, ‘eles vão invadir’ aí eu dava um salve antes pros caras já se prepararem ou vazarem. Eram aquelas barracas de lona preta.
Mortes na Cracolândia
Vi também muita gente morrer. Na época do buraco, onde hoje é a tenda, [cortiços com entrada na alameda Dino Bueno e na rua Helvétia derrubados para a construção do programa ‘De braços abertos’, da gestão Haddad] eu vi umas 80 pessoas morrerem ali. Era ali mesmo que eles matavam. Você fumava crack ali e sentia o cheiro de pele queimando vindo lá do fundo. Quando não era isso jogavam entulho em cima, o entulho abafa o cheiro.
Pontos de abastecimento
Eu fazia a escolta de uma menina até a favela do Moinho. Eu ia de bicicleta atrás dela até lá e voltava. Eu buscava ali. Mas lá não é o maior fornecedor, o crack vem da zona leste, zona sul, zona oeste, são vários lugares. Tem vários jeitos de chegar.
Presença policial e corrupção
Se eu fosse abordado falava que não sabia de nada, que o barato era meu e já era. Eu sabia quem era, mas falava pra polícia que não sabia de nada.
A Cracolândia tem polícia envolvida com traficante. Uma vez a polícia me parou com R$ 2.000 no bolso. Eles falaram. ‘Vou levar os R$ 2.000 e você vai embora’. Eu tava com mais R$ 3.000 no bolso, mas eles não viram. Pegaram o dinheiro rápido e me mandaram embora.
O primeiro táxi que eu vi eu peguei, já desci no fluxo e liguei os ‘irmão’. Eles já ficaram na contenção, se acontecesse alguma coisa iam sapecar na bala.
Eles sabem quem vende e quem é usuário, eles sabem tudo. Não pegam, porque querem ganhar dinheiro ou querem pegar os grandes.
Outros delitos
Eu entrava na base da sacola preta na feira do Brás, na feira da madrugada. Entrava na loja com uma nota fiscal falsa, subia a escada rolante, eu e uma mina bem arrumada, ela tirava da prateleira, colocava no chão e eu já colocava na sacola e descia.
Fazia o dia inteiro, R$ 1.500, R$ 2.000 por dia. Mais o esquema do fluxo. Eu vivia bem, ficava no hotel às vezes. Quando eu estourava mesmo ficava 15, 20 dias com hotel, mas já pago.
Eu chegava nos “irmão”, levava a mercadoria que eu fazia na loja e negociava uma parte em droga e outra em dinheiro.
De traficante a usuário
Eu não era muito de fumar no começo, eu me vestia bem, comprava minhas roupas.
Mesmo usando eu trabalhava vendendo, mas em 2008 eu comecei a fumar. Acabou com a minha vida, perdi as pessoas que eu mais gostava, fiquei com vergonha de voltar pra minha casa.
Eu experimentei, foi o meu erro. Eu cheirava e não ficava louco daquele jeito, aí um dia fumei com uma menina num hotel. Eu nunca fui de ficar direto só ali, fazia meu 'corre', ia roubar. Roubava loja, andava bem vestido.
O que é a Cracolândia
A Cracolândia nunca vai acabar, tem muito usuário. Se fosse pra acabar já tinha acabado faz tempo.
Os 'nóias' são envolvidos com os ‘irmão’. A droga fala mais alto. Os caras moram ali, vendem, você acha que o usuário não vai defender? Ninguém gosta de polícia.
Eu aprendi muita coisa na Cracolândia, muita coisa. Muita coisa boa. O pessoal da Cracolândia não é ruim, vai ser ruim se você der mancada, mas se você vacilar você é cobrado em qualquer lugar.
Presença da imprensa
Se eu pegasse um jornalista e fosse só eu e ele, não faria nada. Agora se tivesse mais alguém comigo aí é foda. Ia ter que fazer alguma coisa senão iam pensar que eu tava passando por cima. Eu mesmo não ia falar nada, mas cê tá ligado como que é.
Inclusive na praça Princesa Isabel pegaram um moleque que tava fazendo foto lá e deram um susto nele, sem piedade. Eles não gostam, tem muitos foragidos, muitos que estão pedidos.
Presente e futuro
Hoje, eu falando sobre isso, não tenho orgulho. Isso acabou comigo, acabou com minha saúde.
Por causa da droga eu perdi todos os meus amigos, os que eram sem vício perdi todos. Eles perdem a confiança, o usuário de crack precisa de tempo pra reconquistar a confiança das pessoas.
A droga não vai sair do meu sangue em poucos meses, ela vai ficar pra sempre, quem tem que ser controlado sou eu. Tenho que afastar três coisas da minha vida se eu quiser ficar bem: pessoas com quem eu convivia, lugares que eu ia e coisas que eu fazia. Eu tô conseguindo pouco a pouco, mas sei que não vai ser do dia pra noite.
Vontade de usar eu tenho, mas eu sei que se eu usar não vou conquistar o que eu perdi: o amor da minha família, amigos de verdade."