COMPROMETIMENTO DOS PODERES

As políticas de combate às drogas devem ser focadas em três objetivos específicos: preventivo (educação e comportamento); de tratamento e assistência das dependências (saúde pública) e de contenção (policial e judicial). Para aplicar estas políticas, defendemos campanhas educativas, políticas de prevenção, criação de Centros de Tratamento e Assistência da Dependência Química, e a integração dos aparatos de contenção e judiciais. A instalação de Conselhos Municipais de Entorpecentes estruturados em três comissões independentes (prevenção, tratamento e contenção) pode facilitar as unidades federativas na aplicação de políticas defensivas e de contenção ao consumo de tráfico de drogas.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

ROTINA DE TRAFICO E CONSUMO DE DROGAS ENTRE ALUNOS


Colégio público tem rotina de tráfico e consumo de drogas entre alunos. Reportagem flagrou, em sete dias, alunos do Colégio Estadual Júlio de Castilhos comprando e fumando maconha em horário de aula no pátio

Por: Jeniffer Gularte
ZERO HORA 21/08/2017



Jovem vende maconha para outro estudante no pátio de tradicional escola da Capital Foto: Mário Jr./RBS TV / Agencia RBS

Um homem com capuz se aproxima de um adolescente e entrega a ele uma porção de maconha. O garoto, de boné e mochila nas costas, permanece com a mão estendida, enquanto recebe outras três frações da droga logo depois. Os dois estão cercados por um grupo de 10 adolescentes, que conversa sob a sombra das árvores. O pagamento é feito com duas notas de dinheiro, imediatamente conferidas pelo traficante. Já esmigalhando a erva, o estudante se afasta para unir-se a um segundo grupo, que o espera. Juntos, preparam o cigarro, que é aceso ali mesmo.

O flagrante de venda e consumo de drogas, comum em parques, praças e ruas de Porto Alegre, ocorreu na manhã de 17 de julho, uma segunda-feira, em horário de aula, no pátio do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, mais tradicional escola pública do Rio Grande do Sul. O uso de droga se dava ao lado do refeitório da instituição que formou líderes e intelectuais como Leonel Brizola, Paixão Côrtes e Moacyr Scliar.

Por não serem perturbados, no interior da escola do bairro Santana, a 400 metros do Palácio da Polícia, alunos parecem estar à vontade para a compra e o consumo de entorpecentes no momento em que deveriam estar na sala de aula.


Os registros da reportagem aconteceram em sete ocasiões, nos dias 13, 14, 17, 18 e 19 de julho e 17 e 18 de agosto, entre 7h30min e 11h30min. Estudantes fumavam maconha e traficantes comercializavam entorpecentes nos fundos da instituição que até o final dos anos 1980 era chamada de ¿escola-padrão¿.


O consumo de drogas entre os estudantes se inicia nas primeiras horas da manhã e não se restringe a um momento do dia. Antes das 8h, adolescentes começam a se reunir no pátio dos fundos da escola. Ficam todo o período de aula conversando, trocando mensagens por celular e consumindo drogas. A rotina não condiz com o que prega uma das regras que consta no site da instituição: ¿O aluno deve permanecer na sala de aula, mesmo na troca de períodos.¿


Às 9h, cachimbo de garrafa pet


O comportamento dos estudantes mostra que não há temor de represália. A maioria não se esconde para o consumo. Na manhã de 19 de julho, ao lado da casa de força, quando os termômetros marcavam 5°C na Capital, três gurias e um guri preparavam um cachimbo feito de garrafa pet. Eram 9h.

Todos ajudavam: um esmigalhava a erva, outro fazia o cigarro artesanal, um terceiro preparava a garrafa e o quarto fumava após acender o fogo. Em cinco minutos, a droga estava pronta para consumo. Outros dois estudantes foram atraídos pela movimentação. Mais de uma vez, o cigarro apagou e eles voltaram a acender. Enquanto fumavam, se abraçavam e faziam selfies sem ser incomodados por nenhum professor ou responsável.

Se a droga não ultrapassa os portões da escola, os alunos a recebem pelos muros. Um pula, e na calçada, outro alcança. Isso acontece tanto pela Avenida Piratini, em frente à instituição, quanto na Avenida Laurindo, em uma das vias laterais. Mas não é preciso esforço para ter acesso às dependências do Julinho.

No último dia de aula antes das férias de julho, a reportagem entrou na escola durante o intervalo, circulou pelas dependências e pelo pátio sem ser abordada. No pátio dos fundos, vários grupos fumavam maconha. Próximos a um dos muros, embaixo de uma árvore, jovens dançavam com música alta ao lado de uma garrafa de vodca vazia. Eram 10h30min.


"A memória imediata do aluno vai para o espaço", diz especialista


O consumo de qualquer droga – incluindo o álcool – compromete a aprendizagem do adolescente e está colocando o desenvolvimento de uma geração em xeque. É o que defende a psiquiatra e coordenadora da equipe de dependência química da Fundação Mario Martins, Isabel Suano.

Segundo ela, as áreas do cérebro de fixação e memória estão em amadurecimento até os 19 anos. Com o uso de entorpecentes, o jovem aprende muito menos do que do que poderia:

– Até esta idade, o cérebro ainda não está pronto e o uso de qualquer substância desse tipo interfere no aprendizado. Para poder aprender, tem que fixar e memorizar. Se ele vai para aula sob uso de droga, a memória imediata dele vai para o espaço. O que ele poderia aprender em dez minutos simplesmente não vai ficar na cabeça dele. Isso sem contar que, nesta fase, o adolescente deveria aprender a lidar com os sentimentos, exercitar a frustração, mas, ao contrário disso, temos uma nova geração que está anestesiada.


Realidade ultrapassa portões do colégio


Para o médico psiquiatra e educador Celso Lopes de Souza, da Universidade Federal Paulista (Unifesp), a situação enfrentada pela escola, com consumo e venda de drogas nas suas dependências, deve ser ponto de partida para reinvenção.

– A escola tem de se refundar. É difícil, mas não é impossível. É preciso mostrar riscos, exemplos claros, com muita realidade e sem ficar dourando nem colocando a droga como o pior bicho do mundo. Têm de ser pensadas medidas para quem está usando e para quem ainda não usou – diz Souza.

O desafio, segundo Souza, é formar jovens preparados para entender que as frustrações são passageiras.

– Para o jovem, fazer o que seu colega está fazendo é muito importante. Porém, precisa saber que pode discordar das ideias sem discordar da pessoa. Quando o jovem percebe isso, é mais fácil dizer não às drogas – diz.

O professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) José Vicente Lima Robaina avalia que o cenário reflete a realidade que ultrapassa as portas da escola: a liberdade sem responsabilidade da qual os jovens desfrutam. Robaina acredita que a maioria dos alunos que não consome deve se fortalecer e agir por meio de campanhas, palestras e discussões.


"Adolescente é futuro novo usuário", diz delegado


Após assistir aos vídeos feitos pelo GDI, o diretor de investigações do Departamento Estadual do Narcotráfico (Denarc), delegado Mario Souza, disse que as imagens não deixam dúvida de que ocorre venda de drogas no pátio da escola.

Segundo o policial, o número de alunos fumando é considerável e, aparentemente, o uso se de maconha é feito de formas diferentes: cigarro, cachimbo e narguilé feito com garrafa pet.

– Temos de nos preocupar. As escolas precisam ser blindadas. Os traficantes vão lá porque veem o futuro do seu negócio.O objetivo do traficante é sempre o jovem, por uma questão econômica, considera o delegado. Por isso as escolas precisam de atenção especial.

Desde 2011, a Polícia Civil atua com a Operação Anjos da Lei no combate ao tráfico e consumo de drogas próximo e dentro de escolas. A ação atua na prevenção, com palestras de conscientização, e na repressão, coibindo comercialização. Em seis anos, foram mais de 800 presos. Em 2017, 46 escolas da Capital foram monitoradas, incluindo o Julinho.


Falta de informação



As escolas de Porto Alegre são as únicas do Estado que não têm representante nas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar (Cipave), que discutem e orientam ações dentro das instituições.

Das 30 coordenadorias regionais de educação no Estado, apenas a 1ª, que representa as escolas da Capital, não participa do Cipave, que começou os trabalhos em julho de 2015 mas nunca conseguiu alinhar ações com educandários da metrópole. Das 2,5 mil escolas do RS, 2,4 mil já aderiram:

– As que faltam são as de Porto Alegre. Não temos dados, informações e nenhum tipo de mapeamento daqui porque as escolas não respondem nem os formulários que enviamos – afirma a coordenadora estadual do Cipave, Luciane Manfro.

Enviado em junho, um questionário sobre casos de tráfico, posse e uso de drogas foi respondido por apenas 38 das 250 escolas estaduais da Capital.

– Nesse universo, foram registrados 42 casos. Mas essa é uma amostra pequena para falar da realidade.

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DENUNCIE

Telefone — 0800 518 518
Site — pc.rs.gov.br
E-mail — denarc-denuncia@pc.rs.gov.br

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CONTRAPONTO

- O que diz a Secretaria Estadual da Educação - Em abril, a direção do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, esteve reunida com membros do Ministério Público para denunciar a venda de drogas nas imediações da escola. No mês seguinte, um contato foi feito com o Denarc, que ministrou palestras preventivas aos alunos — outros dois encontros do tipo vão ocorrer na escola ainda este ano. Sempre que é detectado o consumo e/ou venda de drogas no entorno da escola, é feita a comunicação às autoridades policiais.
O atual quadro de funcionários da Escola Estadual Júlio de Castilhos conta com cinco monitores, e todos têm, entre suas atribuições, a função de observar o pátio e demais dependências. A 1ª Coordenadoria Regional de Educação (1ª CRE) estuda a necessidade de aumentar a quantidade de profissionais atuando no estabelecimento.

 - O que diz a diretora do Colégio Júlio de Castilhos, Fernanda Gaieski - Diretora do Colégio Júlio de Castilhos, Fernanda Gaieski não reconhece a venda de drogas por alunos, mas admite que a escola já teve denúncias de tráfico e que o consumo de entorpecentes é, sim, uma realidade. Falta de professores e monitores para circular pelo pátio, pouco controle de quem entra e sai na escola são, segundo ela, algumas das dificuldades que a escola enfrenta.

A reportagem fez imagens de uso e venda de drogas dentro do pátio do Julinho. A escola tem conhecimento disso, já teve problemas?Não. Isso, para mim, é uma novidade. Tanto é que todas as inferências que fizemos como direção de escola, os alunos foram encaminhados — os menores para a Polícia Civil e os maiores foram feitos boletins de ocorrência e (eles) foram retirados da escola. Não vejo tráfico de drogas dentro da escola. O Denarc esteve aqui fazendo palestras e vai dar continuidade no segundo semestre. Na investigação do Denarc aqui dentro também não foi visualizada venda ou tráfico na escola. O que estava acontecendo era que alunos estavam trazendo e saíam para comprar drogas no Carandiru (condomínio próximo à instituição) e estavam usando dentro da escola. Já identificamos esses alunos e estamos tomando as providências legais que cabem à escola.

Quando isso ocorreu?Em maio, junho e julho, quando o Denarc esteve aqui. Tivemos a denúncia de que tinha alunos traficando aqui dentro, aí fizemos uma investigação como direção, identificamos os alunos e fizemos o encaminhamento. Quando recebi o delegado do Denarc, ele nos deu todas as alternativas e nos colocou a par de que os alunos pulavam o muro do colégio para comprar droga no Carandiru e voltavam pulando muro de novo, o que a gente não tem como controlar porque o Estado não nos manda monitor para o pátio. O que temos visualizado muito é o tráfico de drogas na praça em frente à escola. O tráfico aqui dentro, para mim, é uma novidade. A questão dos traficantes é muito folclore, tu vais me desculpar. Já virou folclore muito grande a imagem pública do Julinho, de que é visado por traficante. Aqui na escola, não. Isso eu garanto.

Então a senhora acredita que é folclore existir traficantes que são alunos da escola e que vendem droga dentro da escola?Não, estou dizendo que aumentam muito a história porque o Júlio de Castilhos já virou folclore. Não estou dizendo que eles não existam. Posso até ter alunos que esteja trazendo droga. Todos os casos de drogas que identificamos aqui dentro, eram alunos novos do primeiro ano que vieram de outros bairros como Restinga, Partenon e Lomba do Pinheiro.

Tendo em vista essa situação, é necessário monitoramento em tempo integral dos alunos?Estamos o tempo inteiro monitorando. A gente sabe dos grupos que têm. Mas fica difícil: ou a gente monitora alunos ou fizemos o trabalho administrativo da escola. Estamos com 2,2 mil alunos.

Os alunos ficam tempo fora da sala de aula e espalhados nos fundos da escola. É possível controlar quem está "matando" aula?Sim, controlamos e mandamos para aula. Temos esse controle, sim. Agora acabei de chegar do pátio do colégio, tu me pegou no telefone por milagre. Estamos o tempo inteiro circulando no pátio da escola. Mas é como te disse: ou eu circulo no pátio da escola ou eu faço atividade administrativa. E os alunos que identificamos em pontos que sejam locais de provável uso de droga, estamos convocando os pais.

Quantos monitores para o pátio a senhora acha que seriam necessários?Pedi um monitor de pátio. Mas eu não tenho. Nosso problema é as pessoas que pulam o muro. Antes de sairmos de férias nós identificávamos que, todos os dias, pessoas de fora pulavam para dentro da escola. Até que ponto é um aluno do Júlio de Castilho que está trazendo droga? Aqui dentro tem muitos alunos (das escolas) do Inácio Montanha, Idelfolso Gomes, Luciana de Abreu, Protásio Alves e Emílio Massot.

O acesso a escola é realmente fácil. Um dia consegui entrar na escola, pela porta da frente e ninguém perguntou quem eu era.Quem abriu a porta para ti?

A porta estava aberta.A porta não deveria estar aberta, começa por aí. Mas é bom saber. Quando entra alguém, o porteiro deve identificar essa pessoa e direcioná-la para onde ela quer ir. Existe essa falha também. Sabe como é: alguns servidores públicos em determinados momentos. Ele (porteiro) deveria ter lhe parado, aberto a porta e perguntar onde a senhora iria. E não ter deixado entrar. Não autorizamos nem que os pais subam e vão na sala de aula dos filhos.

Esse episódio dá a entender que se eu entrei, qualquer outra pessoa entra também.Com certeza.

Os alunos ficam sem um ou dois períodos de aula, não há monitores no pátio, como vocês controlam eles?A gente controla como pode controlar, também não posso fazer milagre. Não posso transformar água em vinho. Não sou Cristo.

Como os alunos reagem quando são flagrados?É muito difícil. Não posso revistar o aluno, não posso tocar nele, não posso fazer nada, senão serei processada. Nem olhar a mochila. A gente vai muito do bom senso do aluno. Os casos que peguei eu vi que eles estavam usando droga porque cheguei na hora do uso da droga e pedi que me acompanhassem até minha sala. Se não menores de idade, comunico os pais.

Vi uma garrafa de vodca sendo consumida por alunos.O que identificamos, pegamos, recolhemos. Quando vejo os alunos com copos de café, peço pra ver e cheirar o que tem dentro. Mas eles podem não me deixar cheirar. O mesmo com garrafa de chimarrão

segunda-feira, 10 de julho de 2017

CRACOLANDIA, MORTES, CONSUMO E VENDA DE DROGAS


DO R7 - 10/7/2017 às 00h10

Ex-traficante fala sobre consumo e venda de drogas na Cracolândia: "Vi umas 80 pessoas morrerem ali". De vendedor a consumidor de crack, homem avisa: "Não tenho orgulho. Isso acabou comigo"

Peu Araújo, do R7


Alameda Dino Bueno com rua Helvétia, local em que funcionava o fluxo da Cracolândia em agosto de 2016Avener Prado/Folhapress

A reportagem do R7 entrevistou, com exclusividade, um ex-traficante e usuário da região da Cracolândia. O homem de 35 anos, que, por segurança, não será identificado, conta como começou sua trajetória no crime, fala sobre o primeiro trago no crack e explica como o tráfico funciona na região da Luz. Conta ainda sobre as execuções dentro do “fluxo”, policiais corruptos, fontes de abastecimento de pedras.

Vindo do interior de São Paulo, ele conta que chegou à capital há pouco mais de 10 anos com o objetivo de se estabelecer no tráfico de drogas. Ganhou a confiança do PCC (Primeiro Comando da Capital), a quem se refere sempre como "os irmão", e revela que mesmo usando crack mantinha o “emprego”. Ele conta ainda que praticava furtos e até contratou “funcionários” para ampliar os negócios. Segundo ele, sua freguesia incluía até pessoas famosas.

Longe das drogas há pouco mais de quatro meses, o homem tem uma luta diária de se manter distante do consumo e do crime. Para isso ele segue um mantra do que não deve mais fazer. “Voltar para Cracolândia e usar droga de novo.”

Leia o depoimento:

"A chegada ao fluxo

Eu resolvi tentar fazer minha vida aqui em São Paulo. Quando eu cheguei à Cracolândia era na rua do Triunfo com a rua dos Gusmões. Comecei a ficar, pegar amizade com um aqui outro ali. Como eu não tinha onde ficar acabei morando dentro do fluxo.

Eu tive oportunidade com o pessoal que vendia com os ‘irmão’, até com os próprios usuários. O pessoal via que eu era um cara de boa, não pisava na bola, era um cara correria, não tinha medo, debatia com a polícia. Montei minha barraca, tive contato com pessoas fortes e me deram o primeiro pacote pra vender. Graças a Deus eu nunca dei milho com eles. Eu sempre fui um cara honesto com os ‘irmão’.

A negociação

Eles me davam 100 pedras, 40 eram minhas. Eu tinha que dar 600 reais pelo pacote. A pedra naquela época era do tamanho da metade de um dedo, era a Hulk ainda. Aquele crack verde que você dá um trago e fica fora de si.

Eu fazia meus 400 reais com a minha parte, comprava 300 de drogas e colocava um moleque pra trabalhar pra mim. Eu já comecei a fazer minha história. Conversei com os ‘irmão’ e foi tudo normal.

Ampliando os negócios

Eu vendi pedra até pra famoso. Tinha um que vinha aí, dava o trago dentro da Captiva e jogava tudo fora, o cachimbo, bic. Eu acabei formando uma freguesia.

Quando mudou de endereço [foi para a região da alameda Dino Bueno com a Rua Helvétia] eu já tinha mais envolvimento. Eu era mais respeitado, fiz a segurança dos caras nas barracas.

Andava armado.

Eu olhava as barracas pros ‘noias’ [usuários] não mexer. Ficava de olheiro também. ‘Ó a loira’, ‘eles vão invadir’ aí eu dava um salve antes pros caras já se prepararem ou vazarem. Eram aquelas barracas de lona preta.

Mortes na Cracolândia

Vi também muita gente morrer. Na época do buraco, onde hoje é a tenda, [cortiços com entrada na alameda Dino Bueno e na rua Helvétia derrubados para a construção do programa ‘De braços abertos’, da gestão Haddad] eu vi umas 80 pessoas morrerem ali. Era ali mesmo que eles matavam. Você fumava crack ali e sentia o cheiro de pele queimando vindo lá do fundo. Quando não era isso jogavam entulho em cima, o entulho abafa o cheiro.

Pontos de abastecimento

Eu fazia a escolta de uma menina até a favela do Moinho. Eu ia de bicicleta atrás dela até lá e voltava. Eu buscava ali. Mas lá não é o maior fornecedor, o crack vem da zona leste, zona sul, zona oeste, são vários lugares. Tem vários jeitos de chegar.

Presença policial e corrupção

Se eu fosse abordado falava que não sabia de nada, que o barato era meu e já era. Eu sabia quem era, mas falava pra polícia que não sabia de nada.

A Cracolândia tem polícia envolvida com traficante. Uma vez a polícia me parou com R$ 2.000 no bolso. Eles falaram. ‘Vou levar os R$ 2.000 e você vai embora’. Eu tava com mais R$ 3.000 no bolso, mas eles não viram. Pegaram o dinheiro rápido e me mandaram embora.


O primeiro táxi que eu vi eu peguei, já desci no fluxo e liguei os ‘irmão’. Eles já ficaram na contenção, se acontecesse alguma coisa iam sapecar na bala.

Eles sabem quem vende e quem é usuário, eles sabem tudo. Não pegam, porque querem ganhar dinheiro ou querem pegar os grandes.

Outros delitos

Eu entrava na base da sacola preta na feira do Brás, na feira da madrugada. Entrava na loja com uma nota fiscal falsa, subia a escada rolante, eu e uma mina bem arrumada, ela tirava da prateleira, colocava no chão e eu já colocava na sacola e descia.

Fazia o dia inteiro, R$ 1.500, R$ 2.000 por dia. Mais o esquema do fluxo. Eu vivia bem, ficava no hotel às vezes. Quando eu estourava mesmo ficava 15, 20 dias com hotel, mas já pago.

Eu chegava nos “irmão”, levava a mercadoria que eu fazia na loja e negociava uma parte em droga e outra em dinheiro.

De traficante a usuário

Eu não era muito de fumar no começo, eu me vestia bem, comprava minhas roupas.

Mesmo usando eu trabalhava vendendo, mas em 2008 eu comecei a fumar. Acabou com a minha vida, perdi as pessoas que eu mais gostava, fiquei com vergonha de voltar pra minha casa.

Eu experimentei, foi o meu erro. Eu cheirava e não ficava louco daquele jeito, aí um dia fumei com uma menina num hotel. Eu nunca fui de ficar direto só ali, fazia meu 'corre', ia roubar. Roubava loja, andava bem vestido.

O que é a Cracolândia

A Cracolândia nunca vai acabar, tem muito usuário. Se fosse pra acabar já tinha acabado faz tempo.

Os 'nóias' são envolvidos com os ‘irmão’. A droga fala mais alto. Os caras moram ali, vendem, você acha que o usuário não vai defender? Ninguém gosta de polícia.

Eu aprendi muita coisa na Cracolândia, muita coisa. Muita coisa boa. O pessoal da Cracolândia não é ruim, vai ser ruim se você der mancada, mas se você vacilar você é cobrado em qualquer lugar.

Presença da imprensa

Se eu pegasse um jornalista e fosse só eu e ele, não faria nada. Agora se tivesse mais alguém comigo aí é foda. Ia ter que fazer alguma coisa senão iam pensar que eu tava passando por cima. Eu mesmo não ia falar nada, mas cê tá ligado como que é.

Inclusive na praça Princesa Isabel pegaram um moleque que tava fazendo foto lá e deram um susto nele, sem piedade. Eles não gostam, tem muitos foragidos, muitos que estão pedidos.

Presente e futuro

Hoje, eu falando sobre isso, não tenho orgulho. Isso acabou comigo, acabou com minha saúde.

Por causa da droga eu perdi todos os meus amigos, os que eram sem vício perdi todos. Eles perdem a confiança, o usuário de crack precisa de tempo pra reconquistar a confiança das pessoas.

A droga não vai sair do meu sangue em poucos meses, ela vai ficar pra sempre, quem tem que ser controlado sou eu. Tenho que afastar três coisas da minha vida se eu quiser ficar bem: pessoas com quem eu convivia, lugares que eu ia e coisas que eu fazia. Eu tô conseguindo pouco a pouco, mas sei que não vai ser do dia pra noite.

Vontade de usar eu tenho, mas eu sei que se eu usar não vou conquistar o que eu perdi: o amor da minha família, amigos de verdade."



domingo, 13 de novembro de 2016

OVERDOSE DE DEMAGOGIA OU FALTA DE TRATAMENTO?



Overdose de demagogia

Como uma cidade deve lidar com dependentes de drogas pesadas como o crack? A ciência diz uma coisa, mas os políticos quase sempre fazem outra

DENIS RUSSO BURGIERMAN
REVISTA ÉPOCA 13/11/2016 - 10h01 - Atualizado 13/11/2016 10h01


EQUÍVOCO
A Cracolândia, área de usuários de drogas em São Paulo. O prefeito eleito João Doria, sem qualquer escrutínio científico, prometeu desmontar um programa que está dando resultados (Foto: Nacho Doce/Reuters)

Um experimento científico clássico sintetiza bem o que a ciência sabe sobre dependência de drogas. Trata-se de uma pesquisa com camundongos publicada em 1981 pelo cientista canadense Bruce Alexander. Alexander sabia que experimentos anteriores tinham demonstrado o terrível potencial destrutivo de certas drogas – em alguns casos, os ratinhos, presos em jaulas com farta disponibilidade de opiáceos, chegavam a morrer de inanição, porque se drogavam a ponto de esquecer de comer.

Pois o canadense resolveu reproduzir essas pesquisas, mas mudando um detalhe: a jaula. Em vez de engaiolar as cobaias sozinhas num espaço ínfimo, sem nenhuma distração, ele construiu o que ficou conhecido como o Rat Park: uma área 200 vezes maior que as jaulas tradicionais, com rodinhas, túneis, cheiros, cores e 15 camundongos para interagir. Alexander descobriu que os ratinhos do Rat Park normalmente perdiam o interesse nas drogas e iam curtir a vida. Drogas são destrutivas. Mas só quando o usuário não tem motivação para largá-las. Algo que sirva de incentivo para viver.


É isso que a ciência sabe – e foi confirmado por outros experimentos, com humanos no lugar de camundongos (como as pesquisas do neurocientista Carl Hart, na Universidade Colúmbia, com usuários de crack). Mas quase nunca esse fato científico é levado em conta no planejamento de políticas para lidar com os problemas que o uso de drogas causa nas cidades. Por décadas, quase todo projeto governamental para lidar com usuários pesados de drogas incluiu coerção, violência e humilhação – estratégias que enfraquecem a vontade e, portanto, deixam os dependentes mais propensos a desistir de viver e afundar-se no vício. As exceções vinham apenas de países irritantemente racionais, como Holanda, Dinamarca, Alemanha, Suíça, e pareciam confirmar a regra.

Por isso foi uma surpresa boa quando, em 2001, um pequeno país católico e conservador, que vinha sofrendo com um surto de uso de heroína, resolveu desenhar uma política de drogas baseada em pesquisas científicas, estruturada pela lógica do acolhimento. Assim Portugal virou referência de sistema coerente e racional para lidar com drogas. Junto com a descriminalização do usuário, o governo estruturou uma rede de cuidado, focada em oferecer alternativas testadas cientificamente para que dependentes tenham vontade de parar. Quinze anos depois, os bons resultados são incontestáveis: menos contaminação de HIV e hepatite C, menos uso por menores de idade, menos degradação nas ruas, menos crime, mais procura por tratamento, melhores resultados no tratamento, overdoses praticamente extintas.
BRAÇOS ABERTOS
Usuários de drogas pagos pela prefeitura de São Paulo varrem ruas. A ação faz parte de programa de reabilitação(Foto: Reginaldo Castro/Folhapress)

Já o Brasil continuou aplicando soluções mais inspiradas em preconceito do que em ciência. Os governantes, assustados com o crack, adotaram as soluções de sempre: truculência policial, prisão, tratamento forçado. Na falta de um projeto abrangente como o português, cada cidade brasileira se virou como pôde. Muitas entregaram a tarefa para igrejas, sem nem fiscalizar: a antítese de uma abordagem racional.

Um lugar virou símbolo desses equívocos históricos nas políticas de drogas brasileiras: a chamada Cracolândia, pedaço especialmente degradado do centro de São Paulo. Por anos, buscou-se “combater o crack” ali por meio de ações policiais como a Operação Sufoco, de 2012. Deu muito errado. Perseguidos, os usuários se espalharam.



Em 2014, a cidade resolveu tentar algo diferente. Implementou o programa De Braços Abertos (DBA), experiência pioneira no Brasil de humanizar o tratamento a dependentes de crack. A prefeitura passou a fornecer moradia a usuários que quisessem sair das ruas, três refeições ao dia, ajuda para regularizar documentos, emprego e renda a quem topasse trabalhar na limpeza das ruas.

O programa não é perfeito: longe disso. A decisão de tolerar o uso de drogas na rua, para não afugentar dependentes, traz uma série de problemas, como a presença de traficantes e a tensão constante com a polícia. Faltam caminhos claros a usuários que querem sair da Cracolândia: oportunidades de moradia e trabalho fora de lá. Falta também clareza de propósito: muitos beneficiários relatam que nunca ninguém lhes contou qual é o objetivo do programa.

Mas ao menos foi uma primeira tentativa de algo um pouco mais alinhado com o conhecimento científico contemporâneo. Como tal, atraiu o interesse de organizações internacionais, como a Open Society Foundation, que financiou um estudo científico independente para avaliar os resultados. Constatou-se que 95% dos beneficiários avaliavam que o programa tivera um impacto positivo em suas vidas. O estudo não trouxe apenas elogios ao programa – trouxe várias críticas e sugestões de ajustes. É assim mesmo que se implementa um projeto com princípios científicos: testa-se, abre-se ao escrutínio científico, muda-se, testa-se outra vez.



E, no entanto, o prefeito eleito em São Paulo, João Doria, indicou antes mesmo da eleição que não considera o DBA um “programa bom para a cidade”, enquanto o Programa Recomeço, ligado ao governo do Estado, sob o comando de seu aliado político Geraldo Alckmin, é. O DBA será extinto. O Recomeço entrará em seu lugar.

O tal Recomeço nada mais é do que um agenciamento de vagas em Comunidades Terapêuticas (CTs), que são centros de tratamento geralmente ligados a igrejas. Não que igrejas não possam ajudar dependentes. Podem, claro. Uma conversão religiosa às vezes é a motivação de que um dependente precisa para encontrar forças para largar a droga. Mas às vezes não é: religião não funciona com todo mundo. E, num país laico e racional, converter-se não pode virar política de Estado. Em Portugal, por exemplo, há igrejas que fazem parte da rede de cuidado estruturada pelo Estado, mas elas têm de cumprir protocolos científicos e abrir-se para a pesquisa. Não é o caso do Recomeço, sobre o qual nunca foi feito um único estudo independente.

Passada a eleição, a equipe de transição do novo governo amenizou as promessas de Doria e já anunciou que pretende manter aspectos bem-sucedidos do DBA, como a hospedagem e a remuneração. Boa notícia. Normalmente, na terra do Fla x Flu, ganhar eleição é a senha para recomeçar tudo, e o cidadão que se vire. Resta torcer para que o governo transcenda a disputa partidária e tenha maturidade para criar uma política integrada do Estado e da cidade, baseada em evidências científicas, misturando o que funciona num programa com o que funciona no outro, sem partidarismo nem moralismo.

Curioso que, enquanto São Paulo se prepara para extinguir o DBA, suas ideias vão lentamente espalhando-se pelo Brasil. Programas inspirados nele já estão em operação em dezenas de cidades, de Curitiba a Palmas, de Joinville a Caruaru, de Brasília a Governador Valadares. Até mesmo o bispo evangélico Marcelo Crivella, eleito prefeito do Rio, elogiou o DBA num debate antes da eleição e garantiu que vai se inspirar nele.




sexta-feira, 8 de abril de 2016

SURRATERAPIA



ZERO HORA 08/04/2016


Mário Corso




A palestra não era longe e a prefeitura mandou um motorista. Saímos cedo, para alguns a noite ainda não acabara. Passávamos por um usuário de crack quando o motorista sugeriu que aquilo se curava com uma ¿camaçada de pau¿.

Contei-lhe um caso que vivi de perto, no interior, nos idos dos 70. Um pai soube que seu filho usava drogas e não teve dúvida, aplicou-lhe uma sova. Mas o filho retornou aos mesmos amigos e aos mesmos hábitos. Veio a segunda dose. Tampouco surtiu efeito e não houve chance de uma terceira porque o rapaz foi embora. Como a cidade era pequena, todos se inteiraram do drama. As informações sobre o seu paradeiro eram desencontradas e nada de ele voltar. Até onde sei, pois eu mudei de cidade, nunca mais se soube dele. Aquela família murchou de dar pena.

Na estrada, a conversa rendia. Relatei vários casos do passado, quando a internação forçada por drogas era legal, que se revelaram um desastre por criar um afastamento físico ou subjetivo da família. Tive pacientes que passaram por isso e a experiência foi sentida como um castigo, uma surra simbólica. Enfim, se a droga pode trazer problemas, a maneira equivocada e apressada de como abordamos o problema pode piorar o que já é ruim. E que, por ouro lado, existem os que convivem com as drogas sem dramas, vão e voltam delas sem incomodar ninguém, nem afundar sua vida.

Como o motorista seguia aferrado à ideia da eficácia da surraterapia, lhe perguntei se ele tinha recebido dos pais essa modalidade terapêutica. Disse que sim. Fora pego mentindo e o pai lhe bateu, e que não o amava menos por isso. Assegurava que a lição lhe garantiu o caráter que tem.

Na minha opinião, respondi, talvez o que operou não fosse a surra, mas uma postura firme do pai lhe mostrando que o tinha em grande consideração e esperava dele um comportamento decente. Porém umas palavras duras poderiam ser igualmente efetivas. Acredito que um pai batendo revelava mais uma fraqueza das suas posições – e uma limitação da sua capacidade de argumentar – do que de uma força moral.

Entendo a vontade desse motorista e de tantas pessoas para colocar um limite na marra aos usuários de crack. Há algo neles que nos desacomoda. As pessoas mais vulneráveis às drogas geralmente são sacos vazios, perderam suas referências e a droga lhes drenou o resto de vitalidade. Estão desgarradas do que já lhes fez sentido um dia. Ao ver o que se tornaram, brota-nos uma necessidade de fazer algo, colocá-los nos eixos. Como trazê-los de volta é que é a questão.O que sei é que a encarnação de um pai violento os deixaria ainda mais longe do mundo que perderam. Aliás, eles estão levando uma surra da vida, deveriam apanhar ainda mais?

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O CRIME E A DROGA



ZERO HORA 25 de fevereiro de 2016 | N° 18456


EDITORIAIS




Multiplicam-se no Estado, especialmente na região metropolitana de Porto Alegre, os crimes relacionados ao tráfico e ao consumo de drogas. Entrevista concedida ontem à Rádio Gaúcha pelo coordenador de Saúde Mental da Secretaria da Saúde do Estado, psiquiatra Luiz Carlos Illafont Coronel, não deixa dúvida de que a explosão de criminalidade no Rio Grande do Sul, assim como em outras áreas do país, decorre do comércio de entorpecentes.

A chamada “guerra do tráfico”, que se desenvolve nas vilas periféricas, nem sempre abate integrantes das milícias de traficantes em confronto. Nesta semana mesmo, moradores de regiões conflagradas, sem qualquer antecedente policial, tombaram por conta de tiros disparados a esmo, ou direcionados a supostos rivais dos atiradores.

A violência cresce na mesma proporção do encolhimento da Brigada Militar e da Polícia Civil, conforme reportagem divulgada ontem por ZH. As corporações não têm efetivo suficiente para um policiamento ostensivo que iniba os delinquentes e passe confiança aos cidadãos. Mas a criminalidade desenfreada também decorre de outros fatores bem conhecidos, tais como a precariedade do sistema prisional, as deficiências da legislação penal e as fragilidades do regime semiaberto.

Mas o fator de maior peso neste conjunto de causas indutoras da violência continua sendo o imobilismo do poder público, que usa a crise financeira como pretexto para sua inoperância, enquanto os cidadãos se encarceram em suas casas com medo de se tornarem as próximas vítimas de homicidas, traficantes e ladrões, que são os grandes beneficiários do caos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

NOVA DROGA SINTÉTICA DESAFIA AS AUTORIDADES



ZERO HORA 28 de outubro de 2015 | N° 18338


CAETANNO FREITAS

VENDIDA COMO LSD

COMERCIALIZADO EM SELOS com desenhos na maior parte do casos, NBOMe tem efeitos similares aos da dietilamida do ácido lisérgico, mas há alto risco de morte por overdorse com porções menores


Em uma festa no velódromo da Universidade de São Paulo, na zona oeste da capital paulista, o estudante Victor Hugo dos Santos, de 20 anos, morre após ingerir uma substância alucinógena. Três jovens com idades entre 17 e 20 anos compram pó, em Caxias do Sul, pensando ser cocaína. Cheiram e, de forma quase instantânea, começam a ter convulsões, um deles entra em coma. Os dois casos – em setembro de 2014 em São Paulo e no mês passado na Serra – têm personagem em comum: o NBOMe, nova droga sintética que engana usuários e preocupa autoridades em todo país.

O Rio Grande do Sul é o terceiro, ao lado do Rio Grande do Norte, no ranking de apreensões de NBOMe pela Polícia Federal. Os dois Estados concentram 7,78% das 10 mil unidades recolhidas. A maioria é encontrada em São Paulo (31,11%) e no Paraná (13,33%).

Apesar de vendido como LSD – na maioria das vezes em selos –, é mais forte, com alto nível de toxicidade. O gosto amargo é a principal diferença em relação à droga sintética conhecida como “doce”.

– O NBOMe tem mecanismo de ação muito similar ao do LSD. É um alucinógeno, o que é buscado pelo usuário. Só que os efeitos tóxicos são muito mais graves. Há alto risco de overdose em porções menores – afirma o perito criminal da Polícia Federal Rafael Ortiz.

A concentração do princípio ativo em doses de NBOMe, também encontrado em pó, líquido, cápsulas ou comprimidos, pode ser até 40 vezes mais alta do que no LSD, dependendo da forma como é consumido. Além disso, o tempo de ação chega a 12 horas, quase o dobro da duração média do LSD.

– A viagem, como os usuários falam, é mais longa e pesada. Tudo isso acaba sendo uma propaganda para o traficante, que convence os usuários dizendo que é LSD “do bom”. Na realidade, é o NBOMe, muito mais agressivo – salienta o delegado do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) Mário Souza.

CONFIRMAÇÃO SÓ DEPOIS DA PERÍCIA

Em 2015, o Denarc registrou salto de quase 180% nas apreensões de LSD, em relação 2014. Parte da explicação para o aumento está no surgimento do NBOMe, que só pode ser detectado pela perícia.

– Nesse ano, somente nos primeiros cinco meses, o número de solicitações de perícia da PF para identificar NBOMe em apreensões foi praticamente o mesmo que em todo o ano de 2013 – aponta o farmacêutico bioquímico Carlos Alberto Wayhs, que pesquisa o perfil das apreensões da droga no Brasil.

Segundo Wayhs, ainda são raros dados sobre o uso da nova droga, e o conhecimento dos efeitos à saúde são provenientes de casos de intoxicações que levaram ao hospital, permitindo avaliações.

– É importante expandir esse conhecimento para dar suporte ao tratamento adequado e ao diagnóstico correto – analisa Renata Limberger, coordenadora do Laboratório de Análises e Pesquisa em Toxicologia da Faculdade de Farmácia da UFRGS.


Droga era “legalizada” no Brasil até ano passado


O conhecimento toxicológico do NBOMe é tão recente quanto sua proibição. Na Europa e nos EUA, foi vetado apenas em 2013. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) só incluiu a droga na lista de substâncias proibidas em fevereiro de 2014.

Antes disso, era conhecido como LSD “legal” ou “genérico”. Traficantes saíam impunes na Justiça, pois peritos não conseguiam atestar presença de dietilamida do ácido lisérgico nas apreensões e ainda não se sabia como identificar NBOMe.

– Com certeza, todos os casos até 2014 não foram penalizados, porque a Anvisa não considerava o NBOMe uma droga até então. A análise química das substâncias apreendidas necessita de uma certeza muito elevada, porque é a partir da comprovação no laudo que a pessoa é penalizada, configurando a materialidade do crime – sustenta o perito criminal da Polícia Federal Rafael Ortiz.

A falta de informações sobre a droga fica evidente na dificuldade enfrentada pelo Instituto-Geral de Perícias do Estado. Zero Hora teve acesso a seis laudos, emitidos entre dezembro de 2013 e abril de 2015 e, em nenhum deles, foram constatados componentes químicos do LSD, embora todos tenham sido solicitados a partir de apreensões da droga.

Em duas das perícias, foram encontradas ketamina e brolanfetamina, substâncias que aparecem, geralmente, em conjunto com o NBOMe.

Atualmente, são conhecidos ao menos 11 tipos de compostos psicoativos do NBOMe. Quatro deles já foram identificados no Brasil.

sábado, 26 de setembro de 2015

A CONTA DO TRÁFICO ESTOURA EM VOCÊ

DIÁRIO GAÚCHO - 26/09/2015 | 11h31


Carros, cargas, celulares e cabos furtados estão no topo das moedas de troca que valem ouro para garantir a rentabilidade do mercado da droga.



Foto: Divulgação / Polícia Militar





Eduardo Torres




A delegacia é especializada na investigação de roubos de veículos do Vale do Sinos, mas neste ano já apreendeu 1,2 tonelada de drogas na região, praticamente o mesmo índice do Denarc – o Departamento de Investigações do Narcotráfico.

O dado surpreendente revela, para a polícia, quem está lucrando mais na ponta de uma cadeia impulsionada pelo crime que mais cresce no Estado. Mesmo em tempos de crise econômica, traficantes seguem investindo em carros roubados ou furtados como uma moeda de troca muito valiosa. O Diário Gaúcho fez um levantamento para saber como essa organização criminosa impacta na vida do cidadão.

Veículo vira droga

Levantamentos da Polícia Civil atestam que um carro popular roubado nas ruas da Região Metropolitana, depois de clonado e transportado para a fronteira com o Paraguai, retorna, em forma de drogas – na maioria das vezes, maconha – e multiplicado em até 30 vezes o valor com que foi negociado entre criminosos.

– A possibilidade de ganhos que os traficantes viram neste negócio é muito maior e menos arriscada do que um roubo a banco – afirma o delegado Rodrigo Zucco.

Os investigadores já constataram que o uso dos carros como moeda de troca foi institucionalizado. A partir das cadeias, o comando dos Manos estaria orientando criminosos a fazerem a compra das drogas a partir de carros roubados e furtados.Segundo o Ministério Público, somente um núcleo da facção chega a lucrar R$ 50 mil por semana.

– É um negócio com baixo risco de prisão e de perdas, além de garantir alta lucratividade – avalia
o delegado.

Flagrante

A apuração começou com as prisões de suspeitos com um Golf e um Cerato clonados, carregados com ecstasy, em Campo Bom, em maio. Um dos suspeitos foi liberado, mas seguiu sendo monitorado. Na semana seguinte os agentes chegaram até ele em Canoas, a partir de um Fusion roubado, que ele dirigia no Bairro Mathias Velho.

– Tínhamos a informação de que esse grupo havia recebido um grande carregamento justamente em troca de carros – aponta Zucco.

Em Canoas, os policiais chegaram a um carregamento de 520kg de maconha. No mês passado, apreenderam mais 683kg. A droga estava escondida em uma caminhonete L200 clonadas. O veículo havia sido roubado, adulterado e seguiria para Foz do Iguaçu após a entrega.


Carros sob encomenda

Segurança Pública revelam que, no primeiro semestre deste ano, 1.608 veículos foram furtados ou roubados somente entre São Leopoldo e Novo Hamburgo. Na Capital, o número é superior a 6 mil veículos.

O traficante, no entanto, raramente se envolve no roubo do carro. Ele funciona como um comprador desses veículos encomendados a receptadores, que funcionam como intermediários nessa rede.

– Três carros médios valem até 200kg de maconha – revela o delegado Rodrigo Zucco.

Depois de roubado, encaminhado a um receptador e clonado, um carro médio é vendido por valores em torno de R$ 3 mil ao traficante interessado em negociar o veículo por drogas.

Entregues os veículos na fronteira com o Paraguai, geralmente outro carro clonado é usado para transportar a droga até a Região Metropolitana.

Como o prejuízo chega a seu bolso

Chega a pesar 50% no preço do seguro de um carro o risco que ele tem de ser roubado. De janeiro a julho, houve um aumento de 11% no seguro dos mais vendidos no país. Em Porto Alegre, nos últimos dois anos a cotação de seguro na Zona Sul registrou um salto. Está na Capital o seguro mais caro dos modelos de carros mais roubados. O seguro de um Honda Civic 2015 chega a R$ 3,9 mil. De acordo com a Federação Nacional de Seguros Gerais, no primeiro semestre o setor movimentou R$ 7,8 bilhões. E, mesmo com a crise econômica, o setor cresceu 6,5%. Até o ano passado, apenas 30% da frota brasileira era segurada.


Cargas, o “trem pagador”

A histórica relação entre o tráfico e roubo a banco perde espaço no Estado. Seguindo uma tendência já observada pela polícia em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, os ataques que passam a alimentar as finanças dos traficantes são contra cargas – tanto aos depósitos quanto aos caminhões.

Com muitos traficantes conhecedores dos meandros do Porto Seco e com histórico anterior em roubos, a Zona Norte de Porto Alegre, concentra esses crimes.

Uma vez roubado, de acordo com os investigadores, o produto é repassado informalmente por preços abaixo do mercado, mas geralmente com uma roupagem de produto legal.

– O consumidor tem participação direta na alimentação dessa cadeia. Quando compra um celular de origem duvidosa e com preço suspeito, uma carteira de cigarros por preços muito abaixo do encontrado normalmente ou ainda um produto eletrônico anunciado de forma duvidosa, pode estar sendo cúmplice disso – aponta o delegado Juliano Ferreira, da Delegacia de Roubos de Cargas, do Deic.

Como o prejuízo chega a seu bolso

A conta do que movimenta a indústria do tráfico chega não apenas sob a forma de mais insegurança, mas também no bolso. A estimativa de empresas seguradoras é de que os roubos de carga já pesam cerca de 16% no preço de cada produtos. É o custo do que é investido em segurança repassado no preço de cada produto ao consumidor.


Celular é o caixa rápido

Se na ponta de cima do mundo do tráfico os carros passaram a valer ouro, no varejo, são os celulares.
– É um produto de rápida saída. Assim que é roubado, tem logo um receptador que recoloca o celular sem dificuldade na rua, vendendo por preços bem abaixo do mercado – diz o delegado Hilton Müller, da 17ª DP.

A delegacia lida com a meca dos ladrões de celulares, na região do Centro Histórico. Ali, segundo a Brigada Militar, é possível encontrar a cadeia completa desse tipo de crime. A partir das mãos do assaltante, um aparelho avaliado em mais de R$ 1 mil é vendido por R$ 50. O lucro no repasse desse aparelho chega a R$ 500.

O papel do traficante, de acordo com o delegado, não é central neste esquema. Ele é mais um interessado. De acordo com o Denarc, celulares estão entre os objetos mais encontrados em bocas de fumo. São uma espécie de capital de giro para o gerente do tráfico.

Conforme um levantamento da seguradora Bem Mais Seguro, por hora são roubados pelo menos quatro celulares em Porto Alegre, mas apenas 60% dos casos chegam a ser registrados na polícia. O prejuízo médio às vítimas da Capital, segundo o levantamento, é de R$ 825.

Como o prejuízo chega a seu bolso

Para proteger um iPhone, por exemplo, o custo pode chegar ao mesmo de um seguro para o carro. Chega a R$ 1,5 mil. Conforme um levantamento de empresas seguradoras, em Porto Alegre, o prejuízo médio das vítimas de roubos de celulares é superior a R$ 800.

Furtos sustentam o vício

Nas bocas de fumo, o crack é a droga mais barata. Mas, em contrapartida, é a de cobrança mais cara. Então, o usuário corre atrás do que conseguir para honrar este preço. O cobre presente no núcleo de cabos telefônicos ou de luz está entre os alvos preferidos.

De acordo com a Delegacia de Crimes contra o Patrimônio, do Deic, são pelo menos dez ocorrências diárias desse tipo de furto na Região Metropolitana. A estimativa é de que, a cada dia, pelo menos 30 mil pessoas sintam o prejuízo pelo serviço que deixa de ser prestado.

O quilo do cobre nos ferro-velhos custa R$ 15. É o dinheiro que o usuário leva para o traficante. O rigor em cobrar os usuários do crack segue uma lógica perversa. A droga é a mais cara para a compra na fronteira com o Paraguai. Lá, o quilo de crack custa R$ 10 mil, contra R$ 100 pelo da maconha.


De acordo com a delegada Sílvia Coccaro, o foco das investigações está nos receptadores já que os usuários furtam para conseguir comprar mais drogas, aparentemente sem uma ação organizada ou comandada por traficantes.

Como o prejuízo chega a seu bolso

Dentro de casa, além dos dias de incômodo com cortes de serviços em virtude dos furtos de cabos, o custo para reposição chega na conta da luz. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o Brasil perde anualmente R$ 4,5 bilhões somente em desvios de todo o tipo. As chamadas perdas não técnicas, que incluem os furtos, pesam, ema média, 38% na formação da tarifa da luz.