COMPROMETIMENTO DOS PODERES

As políticas de combate às drogas devem ser focadas em três objetivos específicos: preventivo (educação e comportamento); de tratamento e assistência das dependências (saúde pública) e de contenção (policial e judicial). Para aplicar estas políticas, defendemos campanhas educativas, políticas de prevenção, criação de Centros de Tratamento e Assistência da Dependência Química, e a integração dos aparatos de contenção e judiciais. A instalação de Conselhos Municipais de Entorpecentes estruturados em três comissões independentes (prevenção, tratamento e contenção) pode facilitar as unidades federativas na aplicação de políticas defensivas e de contenção ao consumo de tráfico de drogas.

domingo, 13 de novembro de 2016

OVERDOSE DE DEMAGOGIA OU FALTA DE TRATAMENTO?



Overdose de demagogia

Como uma cidade deve lidar com dependentes de drogas pesadas como o crack? A ciência diz uma coisa, mas os políticos quase sempre fazem outra

DENIS RUSSO BURGIERMAN
REVISTA ÉPOCA 13/11/2016 - 10h01 - Atualizado 13/11/2016 10h01


EQUÍVOCO
A Cracolândia, área de usuários de drogas em São Paulo. O prefeito eleito João Doria, sem qualquer escrutínio científico, prometeu desmontar um programa que está dando resultados (Foto: Nacho Doce/Reuters)

Um experimento científico clássico sintetiza bem o que a ciência sabe sobre dependência de drogas. Trata-se de uma pesquisa com camundongos publicada em 1981 pelo cientista canadense Bruce Alexander. Alexander sabia que experimentos anteriores tinham demonstrado o terrível potencial destrutivo de certas drogas – em alguns casos, os ratinhos, presos em jaulas com farta disponibilidade de opiáceos, chegavam a morrer de inanição, porque se drogavam a ponto de esquecer de comer.

Pois o canadense resolveu reproduzir essas pesquisas, mas mudando um detalhe: a jaula. Em vez de engaiolar as cobaias sozinhas num espaço ínfimo, sem nenhuma distração, ele construiu o que ficou conhecido como o Rat Park: uma área 200 vezes maior que as jaulas tradicionais, com rodinhas, túneis, cheiros, cores e 15 camundongos para interagir. Alexander descobriu que os ratinhos do Rat Park normalmente perdiam o interesse nas drogas e iam curtir a vida. Drogas são destrutivas. Mas só quando o usuário não tem motivação para largá-las. Algo que sirva de incentivo para viver.


É isso que a ciência sabe – e foi confirmado por outros experimentos, com humanos no lugar de camundongos (como as pesquisas do neurocientista Carl Hart, na Universidade Colúmbia, com usuários de crack). Mas quase nunca esse fato científico é levado em conta no planejamento de políticas para lidar com os problemas que o uso de drogas causa nas cidades. Por décadas, quase todo projeto governamental para lidar com usuários pesados de drogas incluiu coerção, violência e humilhação – estratégias que enfraquecem a vontade e, portanto, deixam os dependentes mais propensos a desistir de viver e afundar-se no vício. As exceções vinham apenas de países irritantemente racionais, como Holanda, Dinamarca, Alemanha, Suíça, e pareciam confirmar a regra.

Por isso foi uma surpresa boa quando, em 2001, um pequeno país católico e conservador, que vinha sofrendo com um surto de uso de heroína, resolveu desenhar uma política de drogas baseada em pesquisas científicas, estruturada pela lógica do acolhimento. Assim Portugal virou referência de sistema coerente e racional para lidar com drogas. Junto com a descriminalização do usuário, o governo estruturou uma rede de cuidado, focada em oferecer alternativas testadas cientificamente para que dependentes tenham vontade de parar. Quinze anos depois, os bons resultados são incontestáveis: menos contaminação de HIV e hepatite C, menos uso por menores de idade, menos degradação nas ruas, menos crime, mais procura por tratamento, melhores resultados no tratamento, overdoses praticamente extintas.
BRAÇOS ABERTOS
Usuários de drogas pagos pela prefeitura de São Paulo varrem ruas. A ação faz parte de programa de reabilitação(Foto: Reginaldo Castro/Folhapress)

Já o Brasil continuou aplicando soluções mais inspiradas em preconceito do que em ciência. Os governantes, assustados com o crack, adotaram as soluções de sempre: truculência policial, prisão, tratamento forçado. Na falta de um projeto abrangente como o português, cada cidade brasileira se virou como pôde. Muitas entregaram a tarefa para igrejas, sem nem fiscalizar: a antítese de uma abordagem racional.

Um lugar virou símbolo desses equívocos históricos nas políticas de drogas brasileiras: a chamada Cracolândia, pedaço especialmente degradado do centro de São Paulo. Por anos, buscou-se “combater o crack” ali por meio de ações policiais como a Operação Sufoco, de 2012. Deu muito errado. Perseguidos, os usuários se espalharam.



Em 2014, a cidade resolveu tentar algo diferente. Implementou o programa De Braços Abertos (DBA), experiência pioneira no Brasil de humanizar o tratamento a dependentes de crack. A prefeitura passou a fornecer moradia a usuários que quisessem sair das ruas, três refeições ao dia, ajuda para regularizar documentos, emprego e renda a quem topasse trabalhar na limpeza das ruas.

O programa não é perfeito: longe disso. A decisão de tolerar o uso de drogas na rua, para não afugentar dependentes, traz uma série de problemas, como a presença de traficantes e a tensão constante com a polícia. Faltam caminhos claros a usuários que querem sair da Cracolândia: oportunidades de moradia e trabalho fora de lá. Falta também clareza de propósito: muitos beneficiários relatam que nunca ninguém lhes contou qual é o objetivo do programa.

Mas ao menos foi uma primeira tentativa de algo um pouco mais alinhado com o conhecimento científico contemporâneo. Como tal, atraiu o interesse de organizações internacionais, como a Open Society Foundation, que financiou um estudo científico independente para avaliar os resultados. Constatou-se que 95% dos beneficiários avaliavam que o programa tivera um impacto positivo em suas vidas. O estudo não trouxe apenas elogios ao programa – trouxe várias críticas e sugestões de ajustes. É assim mesmo que se implementa um projeto com princípios científicos: testa-se, abre-se ao escrutínio científico, muda-se, testa-se outra vez.



E, no entanto, o prefeito eleito em São Paulo, João Doria, indicou antes mesmo da eleição que não considera o DBA um “programa bom para a cidade”, enquanto o Programa Recomeço, ligado ao governo do Estado, sob o comando de seu aliado político Geraldo Alckmin, é. O DBA será extinto. O Recomeço entrará em seu lugar.

O tal Recomeço nada mais é do que um agenciamento de vagas em Comunidades Terapêuticas (CTs), que são centros de tratamento geralmente ligados a igrejas. Não que igrejas não possam ajudar dependentes. Podem, claro. Uma conversão religiosa às vezes é a motivação de que um dependente precisa para encontrar forças para largar a droga. Mas às vezes não é: religião não funciona com todo mundo. E, num país laico e racional, converter-se não pode virar política de Estado. Em Portugal, por exemplo, há igrejas que fazem parte da rede de cuidado estruturada pelo Estado, mas elas têm de cumprir protocolos científicos e abrir-se para a pesquisa. Não é o caso do Recomeço, sobre o qual nunca foi feito um único estudo independente.

Passada a eleição, a equipe de transição do novo governo amenizou as promessas de Doria e já anunciou que pretende manter aspectos bem-sucedidos do DBA, como a hospedagem e a remuneração. Boa notícia. Normalmente, na terra do Fla x Flu, ganhar eleição é a senha para recomeçar tudo, e o cidadão que se vire. Resta torcer para que o governo transcenda a disputa partidária e tenha maturidade para criar uma política integrada do Estado e da cidade, baseada em evidências científicas, misturando o que funciona num programa com o que funciona no outro, sem partidarismo nem moralismo.

Curioso que, enquanto São Paulo se prepara para extinguir o DBA, suas ideias vão lentamente espalhando-se pelo Brasil. Programas inspirados nele já estão em operação em dezenas de cidades, de Curitiba a Palmas, de Joinville a Caruaru, de Brasília a Governador Valadares. Até mesmo o bispo evangélico Marcelo Crivella, eleito prefeito do Rio, elogiou o DBA num debate antes da eleição e garantiu que vai se inspirar nele.




sexta-feira, 8 de abril de 2016

SURRATERAPIA



ZERO HORA 08/04/2016


Mário Corso




A palestra não era longe e a prefeitura mandou um motorista. Saímos cedo, para alguns a noite ainda não acabara. Passávamos por um usuário de crack quando o motorista sugeriu que aquilo se curava com uma ¿camaçada de pau¿.

Contei-lhe um caso que vivi de perto, no interior, nos idos dos 70. Um pai soube que seu filho usava drogas e não teve dúvida, aplicou-lhe uma sova. Mas o filho retornou aos mesmos amigos e aos mesmos hábitos. Veio a segunda dose. Tampouco surtiu efeito e não houve chance de uma terceira porque o rapaz foi embora. Como a cidade era pequena, todos se inteiraram do drama. As informações sobre o seu paradeiro eram desencontradas e nada de ele voltar. Até onde sei, pois eu mudei de cidade, nunca mais se soube dele. Aquela família murchou de dar pena.

Na estrada, a conversa rendia. Relatei vários casos do passado, quando a internação forçada por drogas era legal, que se revelaram um desastre por criar um afastamento físico ou subjetivo da família. Tive pacientes que passaram por isso e a experiência foi sentida como um castigo, uma surra simbólica. Enfim, se a droga pode trazer problemas, a maneira equivocada e apressada de como abordamos o problema pode piorar o que já é ruim. E que, por ouro lado, existem os que convivem com as drogas sem dramas, vão e voltam delas sem incomodar ninguém, nem afundar sua vida.

Como o motorista seguia aferrado à ideia da eficácia da surraterapia, lhe perguntei se ele tinha recebido dos pais essa modalidade terapêutica. Disse que sim. Fora pego mentindo e o pai lhe bateu, e que não o amava menos por isso. Assegurava que a lição lhe garantiu o caráter que tem.

Na minha opinião, respondi, talvez o que operou não fosse a surra, mas uma postura firme do pai lhe mostrando que o tinha em grande consideração e esperava dele um comportamento decente. Porém umas palavras duras poderiam ser igualmente efetivas. Acredito que um pai batendo revelava mais uma fraqueza das suas posições – e uma limitação da sua capacidade de argumentar – do que de uma força moral.

Entendo a vontade desse motorista e de tantas pessoas para colocar um limite na marra aos usuários de crack. Há algo neles que nos desacomoda. As pessoas mais vulneráveis às drogas geralmente são sacos vazios, perderam suas referências e a droga lhes drenou o resto de vitalidade. Estão desgarradas do que já lhes fez sentido um dia. Ao ver o que se tornaram, brota-nos uma necessidade de fazer algo, colocá-los nos eixos. Como trazê-los de volta é que é a questão.O que sei é que a encarnação de um pai violento os deixaria ainda mais longe do mundo que perderam. Aliás, eles estão levando uma surra da vida, deveriam apanhar ainda mais?

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O CRIME E A DROGA



ZERO HORA 25 de fevereiro de 2016 | N° 18456


EDITORIAIS




Multiplicam-se no Estado, especialmente na região metropolitana de Porto Alegre, os crimes relacionados ao tráfico e ao consumo de drogas. Entrevista concedida ontem à Rádio Gaúcha pelo coordenador de Saúde Mental da Secretaria da Saúde do Estado, psiquiatra Luiz Carlos Illafont Coronel, não deixa dúvida de que a explosão de criminalidade no Rio Grande do Sul, assim como em outras áreas do país, decorre do comércio de entorpecentes.

A chamada “guerra do tráfico”, que se desenvolve nas vilas periféricas, nem sempre abate integrantes das milícias de traficantes em confronto. Nesta semana mesmo, moradores de regiões conflagradas, sem qualquer antecedente policial, tombaram por conta de tiros disparados a esmo, ou direcionados a supostos rivais dos atiradores.

A violência cresce na mesma proporção do encolhimento da Brigada Militar e da Polícia Civil, conforme reportagem divulgada ontem por ZH. As corporações não têm efetivo suficiente para um policiamento ostensivo que iniba os delinquentes e passe confiança aos cidadãos. Mas a criminalidade desenfreada também decorre de outros fatores bem conhecidos, tais como a precariedade do sistema prisional, as deficiências da legislação penal e as fragilidades do regime semiaberto.

Mas o fator de maior peso neste conjunto de causas indutoras da violência continua sendo o imobilismo do poder público, que usa a crise financeira como pretexto para sua inoperância, enquanto os cidadãos se encarceram em suas casas com medo de se tornarem as próximas vítimas de homicidas, traficantes e ladrões, que são os grandes beneficiários do caos.