COMPROMETIMENTO DOS PODERES

As políticas de combate às drogas devem ser focadas em três objetivos específicos: preventivo (educação e comportamento); de tratamento e assistência das dependências (saúde pública) e de contenção (policial e judicial). Para aplicar estas políticas, defendemos campanhas educativas, políticas de prevenção, criação de Centros de Tratamento e Assistência da Dependência Química, e a integração dos aparatos de contenção e judiciais. A instalação de Conselhos Municipais de Entorpecentes estruturados em três comissões independentes (prevenção, tratamento e contenção) pode facilitar as unidades federativas na aplicação de políticas defensivas e de contenção ao consumo de tráfico de drogas.

sábado, 31 de maio de 2014

ASSESSORA DIZ QUE DROGA É LAZER DAS PESSOAS E FATOR DE SOCIABILIDADE

VEJA ONLINE,
31/05/2014 às 18:33

Blog Reinaldo Azevedo

As cracolândias se multiplicam em São Paulo. Fim da picada: assessora da Prefeitura diz que droga é “lazer das pessoas” e “fator de sociabilidade”. Asco!



Se vocês quiserem saber no que resultou a política de tolerância da Prefeitura de São Paulo com a Cracolândia da região central, devem observar o mapa abaixo. Ele localiza as várias cracolândias espalhadas pela cidade. Se o prefeito Fernando Haddad decidiu transformar aquela área do Centro em zona livre do tráfico e do consumo de drogas — e não adianta negar porque é disso que se trata —, por que não fazer o mesmo nesses outros locais? Se aqueles merecem salário e moradia de graça, por que não esses outros? Vejam o mapa. Volto depois.



VEJA.com publica uma reportagem de Felipe Frazão sobre esses pontos de consumo de droga. Reproduzo um trecho (em vermelho, com destaque). Volto em seguida.
(…)
O crescimento de cracolândias nas periferias costuma ser associado por estudiosos do tema a operações de remoção mal sucedidas no passado, como a promovida pela Polícia Militar em janeiro de 2012. A PM ocupou a região central e tentou dispersar a aglomeração de usuários e sufocar as vendas de traficantes, ao passo que a prefeitura passou a limpar as ruas e demoliu uma série de casebres onde os dependentes se escondiam. O fluxo de usuários na Luz diminuiu, e supõe-se que muitos deles tenham migrado de vez para outros locais. Mas não houve monitoramento adequado para comprovar a migração. Nesta semana, um grupo de dependentes resistente aos programas do Estado e da prefeitura montou acampamento na Alameda Cleveland. A pracinha ficou lotada: traficantes se aproximavam em bicicletas para vender pedras, enquanto os usuários ofereciam para troca quinquilharias e objetos roubados, como caixas de som portáteis, cordões e telefones. Havia crianças e adolescentes entre eles, além de grávidas. A movimentação era caótica, num ritmo particular. “Temos que entender esse fenômeno como um de lazer das pessoas”, diz Cibele. “Elas criam uma sociabilidade, constituem uma comunidade com regras de convivência e certa solidariedade e relações interpessoais. A droga é mais uma consequência do desemprego e da miséria e não a causa.”
(…)

Voltei
A versão de que foi a ocupação da Cracolândia, em 2012, que fez multiplicar as cracolândias é feitiçaria política e ideológica dos ditos “especialistas”, todos eles certamente partidários da atual política do prefeito Fernando Haddad, um dos maiores desastres da história de São Paulo.

Comecemos pelo óbvio: a Cracolândia hoje é mais livre do que jamais foi. Tudo está como era antes, só que pior: porque agora a Prefeitura injeta dinheiro no local, o que provocou, inclusive, uma elevação do preço da pedra vendida na região. A inflação da droga acaba expulsando os usuários ainda mais miseráveis. Por incrível que pareça, já há subníveis sociais dentro do consumo de crack.

Haddad já anunciou que o próximo passo é começar a alugar quartos para viciados também na região do Parque D. Pedro II. Leiam ali o que diz a tal “Cibele” — trata-se de Cibele Neder, assessora de saúde mental, álcool e outras drogas da Secretaria Municipal de Saúde: “Temos que entender esse fenômeno [do crack] como um de lazer das pessoas. Elas criam uma sociabilidade, constituem uma comunidade com regras de convivência e certa solidariedade e relações interpessoais. A droga é mais uma consequência do desemprego e da miséria e não a causa.“

Respondo
Uma tripla ova para esta senhora!

1: se a droga é lazer, então não é um problema! Se é lazer, não é nem problema de saúde pública; se é lazer, a questão tem de passar para a área de turismo (mas sem dinheiro público sustentando o vício de ninguém: lazer é lazer!);

2: a droga só é fator de sociabilidade entre os “iguais” (viciados) porque romperam outros vínculos;
3: o Brasil não tem um problema de desemprego que justifique a tragédia do crack. A afirmação é fruto de ignorância específica. Cibele precisa estudar economia para parar de falar besteira sobre consumo de drogas. Ou, então, precisa estudar direito as drogas para parar de falar besteira sobre economia.

O crack, em suma, se expande na cidade porque existe uma Prefeitura que o considera “lazer das pessoas” e “fator de sociabilidade”. Ei, você aí! Está sozinho, pouco sociável, querendo se integrar? Ah, procure uma rodinha de crack e boa viagem ao inferno, tendo a Cibele como o seu Virgílio. Essa gente provoca em mim vontade vomitar. #prontofalei.Por Reinaldo Azevedo

AS NOVAS CRACOLÂNDIAS DE SÃO PAULO

VEJA ONLINE 31/05/2014 - 16:52


São Paulo. Mapeamento inédito da prefeitura de São Paulo obtido pelo site de VEJA aponta onde estão os 30 pontos de consumo de crack na maior cidade do país

Felipe Frazão



Mulher com cachimbo de crack no Viaduto Jabaquara, uma das principais cracolândias na Zona Sul de São Paulo - Ivan Pacheco

"Saia nóias”. A pichação (com erro gramatical) poderia ter sido feita em um muro qualquer do quadrilátero do centro da capital paulista conhecido como cracolândia, na região da Luz. Mas a frase estampa a repulsa de moradores da Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, nas paredes de um beco da sinuosa Avenida Deputado Cantídio Sampaio, que corta uma série de bairros aos pés da Serra da Cantareira. O local é um dos trinta endereços da cidade onde os usuários de crack se juntam durante a noite para, pedra após pedra, consumir a vida em meio à escuridão.

O site de VEJA percorreu 25 deles nesta semana, depois de obter da prefeitura paulistana a localização exata dos pontos de consumo de crack na cidade. Os dados foram fornecidos pela Secretaria Municipal da Saúde (SMS), dois meses e meio depois de o órgão ter recebido um pedido formal por meio da Lei de Acesso à Informação. Até hoje, o mapeamento das maiores cracolândias da cidade (cientificamente chamadas “cenas de uso de crack”) era mantido em sigilo.

Em fevereiro, a reportagem solicitou a mesma informação a pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – eles realizaram entre 2011 e 2013 o mais importante levantamento nacional sobre o crack, encomendado pelo Ministério da Justiça. O epidemiologista Francisco Inácio Bastos, coordenador da pesquisa "Perfil dos usuários de crack e/ou similares no Brasil", argumentou que não poderia indicar os endereços porque os comitês de ética dos municípios participantes exigiram "estrito sigilo" sobre a identificação dos locais e dos usuários. Segundo Bastos, nem mesmo o Ministério Público de São Paulo recebeu a informação ao solicitar os endereços à Fiocruz. Quando os resultados da pesquisa foram divulgados no ano passado, os mapas indicavam apenas manchas gráficas.

Os trinta pontos indicados pela prefeitura mostram que as cracolândias se expandiram para longe das ações do poder público estadual e municipal nas quatro regiões da cidade (Norte, Sul, Leste e Oeste), apesar de o Centro ainda reunir o maior número de usuários. É na cracolândia "original", consolidada desde os anos 1990 na Luz, que os programas "Recomeço", do governo Geraldo Alckmin (PSDB), e "De Braços Abertos", da gestão Fernando Haddad (PT), concentram as equipes de abordagem e encaminhamento para tratamento de saúde, cadastram dependentes químicos, oferecem trabalho temporário – e alojamento em hotéis, no caso do programa da prefeitura.

As novas cracolândias foram listadas por funcionários das supervisões de saúde mental da prefeitura em janeiro deste ano. Elas representam "cenas de uso de crack frequentes" com cem ou mais dependentes, segundo a psiquiatra Cibele Neder, assessora de saúde mental, álcool e outras drogas da SMS. Ela diz que mais de 200 pontos de uso de crack foram descobertos em toda a cidade, mas que os trinta listados são os considerados problemáticos, com mais aglomeração de pessoas e de uso permanente. "Para a gente chamar de local com problema e que mereça a intervenção do poder público, fizemos um corte com as cenas constantes, com mais de cem pessoas, e que já existissem há algum tempo", disse Cibele. "São locais que já estabeleceram uma dinâmica própria e têm um fluxo constante, mesmo que não sejam as mesmas pessoas. Eles estão diretamente ligados à oferta, ao tráfico de drogas. As pessoas vão ao lugar onde sabem que vão encontrar o crack."

Ficaram de fora do mapa da prefeitura locais onde já houve concentração de usuários de crack retratada pela imprensa, como a Rua Apa e o Elevado Costa e Silva (Minhocão), em Santa Cecília, a Mata do Iguatemi, no Jardim Pedra Branca, os arredores do Viaduto Liberdade, na Liberdade, o canteiro central da Avenida Inajar de Souza, Zona Norte, e a Vila Nova Galvão, na divisa com Guarulhos (SP).

À noite, foi possível encontrar mais de cinquenta dependentes reunidos no Parque Dom Pedro, ao lado Viaduto Diário Popular, na Baixada do Glicério, que faz parte região central degradada. Eles fumavam crack em canteiros do parque, escondidos sob cobertores e agachados nas passarelas do viaduto. Perto dali, um grupo de cinco dependentes ocupava a praça do Viaduto Bresser, na Mooca. Em geral, as cracolândias têm um grupo fixo e frequentadores que passam cerca de três dias e depois se dispersam – gente suficiente para manter o fluxo constante.

As maiores aglomerações foram verificadas no Viaduto Jabaquara, na Avenida dos Bandeirantes, e nos arredores do Ceagesp, maior centro de distribuição de frutas e verduras da América Latina, na Lapa. Em ambos os lugares, havia barracas montadas e mais de cinquenta usuários durante o dia. No Jabaquara, eles recebiam as pedras de crack de uma favela próxima à avenida. Traficantes atravessavam as pistas e desciam os barrancos rapidamente no leva e trás da droga. Eles eram seguidos apenas por cachorros. Os usuários, inclusive um cadeirante, ocupavam as duas margens sob o viaduto e se arriscavam a caminhar na pista. No Ceagesp, eles ficavam próximos a um conjunto habitacional, em ruas com lixo acumulado e farta comida descartada. Além de se esparramarem nas calçadas, acenderam fogueiras e usaram guarda-chuvas para esconder os cachimbos acesos. A cena funciona na rua atrás da sede do 91º DP da Polícia Civil.

Quem é o usuário de crack - NAS CAPITAIS - A pesquisa da Fiocruz identificou o perfil do usuário de crack brasileiro nas capitais: ele é majoritariamente masculino, de cor não-branca, solteiro, adulto na faixa dos 30 anos e de baixa escolaridade (Ensino Fundamental incompleto). A média de consumo é de dezesseis pedras por dia, há um tempo médio de oito anos. Eles começam a fumar pela curiosidade de experimentar os efeitos do crack e também consomem álcool, maconha, cocaína e similares. A maioria consegue dinheiro para comprar pedras de crack com trabalhos esporádicos, esmolas, empréstimos de parentes, pequenos roubos, furtos e prostituição. A maioria deles já teve passagem pela polícia.

A prefeitura expandirá pela primeira vez as ações do atual plano de enfrentamento do crack nessas duas cracolândias: Jabaquara e Ceagesp. No Jabaquara, assistentes sociais e agentes comunitários de saúde já abordaram usuários. E um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) deverá ser instalado para atender dependentes químicos no Ceagesp. Depois o programa tende a ser instalado em Itaquera. Nem sempre o programa oferecerá os mesmos serviços e benefícios (trabalho remunerado, alojamento, refeições e tratamento) que fazem parte do pacote na região da Luz. Os coordenadores afirmam que a determinação é ouvir o que as pessoas querem receber. Na Luz, a demanda era por "um local para tomar banho, comida e trabalho". O atendimento de saúde era considerado secundário, e odontológico, prioridade.

Também na Zona Sul, a reportagem flagrou um dependente circulando com o cachimbo de crack em riste nos arredores do Cemitério São Luiz, no Jardim São Luís. Na Zona Leste, dois usuários fumavam pedras de crack na entrada da Favela da Paz, na Avenida Miguel Inácio Cury, a dez minutos de caminhada do Itaquerão, o estádio de abertura da Copa do Mundo. A cracolândia da favela se espalha num muro abandonado ao redor do pátio do Metrô: é um ponto de prostituição infantil, apinhado de cápsulas de cocaína vazias. Em São Miguel Paulista, os usuários que já ocuparam a Praça do Forró agora se transferiram para a Rua Severina Leopoldina de Souza, ao lado de um mercadão e do Hospital e Maternidade São Miguel. Traficantes agem livremente na rua sem saída. Na Penha, os usuários montaram cabanas sob o Viaduto Engenheiro Alberto Badra, ao lado de uma favela de barracos de madeira – ainda repleta de cinzas por causa de um incêndio recente.

O crescimento de cracolândias nas periferias costuma ser associado por estudiosos do tema a operações de remoção mal sucedidas no passado, como a promovida pela Polícia Militar em janeiro de 2012. A PM ocupou a região central e tentou dispersar a aglomeração de usuários e sufocar as vendas de traficantes, ao passo que a prefeitura passou a limpar as ruas e demoliu uma série de casebres onde os dependentes se escondiam. O fluxo de usuários na Luz diminuiu, e supõe-se que muitos deles tenham migrado de vez para outros locais. Mas não houve monitoramento adequado para comprovar a migração. Nesta semana, um grupo de dependentes resistente aos programas do Estado e da prefeitura montou acampamento na Alameda Cleveland. A pracinha ficou lotada: traficantes se aproximavam em bicicletas para vender pedras, enquanto os usuários ofereciam para troca quinquilharias e objetos roubados, como caixas de som portáteis, cordões e telefones. Havia crianças e adolescentes entre eles, além de grávidas. A movimentação era caótica, num ritmo particular. "Temos que entender esse fenômeno como um de lazer das pessoas", diz Cibele. "Elas criam uma sociabilidade, constituem uma comunidade com regras de convivência e certa solidariedade e relações interpessoais. A droga é mais uma consequência do desemprego e da miséria e não a causa."

Um fator que dificulta a localização das cenas de uso e seu monitoramento é a intensa mobilidade de usuários. Os pesquisadores da Fiocruz relataram que as cracolândias mudam durante os turnos do dia, como se houvesse uma pela manhã, outra à tarde e uma terceira realidade à noite. Eles também notaram que as cenas públicas de consumo da droga mudam conforme as condições climáticas, as decisões do tráfico ou a ocorrência de operações policiais e intervenções urbanísticas.

Durante as visitas a 25 cracolândias nesta semana, o site de VEJA só conseguiu localizar usuários em treze pontos – e em quantidades que variaram de dois a cerca de trezentos viciados. A reportagem não visitou duas cenas de uso no extremo sul da capital e três endereços em favelas da Zona Leste, apontados pela Polícia Militar como "bocas de fumo" (ponto de venda de drogas). O psicólogo e doutor em Epidemiologia em Saúde Pública Carlos Linhares relatou à Agência Fiocruz que, durante estudo sobre cenas de uso do Rio de Janeiro, não foi possível acessar metade dos 193 locais de consumo de crack na capital fluminense.

Fica na Zona Norte a maior quantidade de cracolândias encontrada. No Jardim Andaraí, próximo à Rodovia Presidente Dutra, usuários ocupavam duas ruas: a Balaiada e a Nilton Coelho de Andrade. Além dos barracos na calçada, usavam uma fogueira na rua para espantar o frio. No beco da Brasilândia, os usuários se reuniam para fumar crack em pequenos grupos. Três deles se escondiam atrás de colchões e dentro de uma Kombi azul de janelas escuras. No chão, além de pinos de cocaína abertos, viam-se também pedaços cortados de antenas de carro – usados para montar o cachimbo do crack. Funcionários do aterro industrial que funciona no terreno da antiga pedreira Itaberaba, em frente ao local, disseram que traficantes do bairro também repelem os usuários dali.

Eles se espalham ainda nos piscinões da Avenida General Penha Brasil: cinco deles usavam drogas no Piscinão do Bananal e dois no Guaraú, no Jardim Peri. A comerciante e moradora da avenida Aurora Murakami, de 54 anos, reclamou de roubos em frente à sua loja. "Esse pessoal começou a se espalhar pela periferia. São Paulo virou um monte de zumbis", diz.

domingo, 25 de maio de 2014

MACONHA MEDICINAL NO BRASIL

REVISTA ISTO É N° Edição: 2322 | 23.Mai.14


Vítimas de câncer, esclerose múltipla e mal de Parkinson vão se beneficiar da decisão da Anvisa, que deve autorizar a importação de remédios feitos a partir da cannabis. Saiba como essa decisão pode enriquecer o debate para a descriminalização da droga


Camila Brandalise e Fabíola Perez 






Era 1997 quando a Justiça do Canadá autorizou Terrence Parker, 42 anos, a plantar e consumir maconha para tratar sua epilepsia. Quatro anos depois, o governo canadense foi o primeiro do mundo a regulamentar o uso medicinal da cannabis. O exemplo foi seguido pelo mundo. Nos Estados Unidos, já são 22 os Estados que permitem a produção e comercialização da erva para tratar doenças. No Reino Unido, um laboratório fabrica um medicamento em forma de spray com os dois componentes mais conhecidos da planta: o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD). Recentemente, a França aprovou a venda desse mesmo remédio, assim como outros países europeus. Em Israel, também é possível adquirir a droga mediante autorização do governo. Na Holanda, compra-se a erva na farmácia. E no Brasil? Na quinta-feira 29, quando a diretoria da Anvisa aprovar a reclassificação do CBD, que deve ser liberado com uso controlado, será iniciado um novo marco na relação do País com a droga. ISTOÉ apurou que não há nenhuma resistência por parte dos cinco membros da diretoria técnica da Anvisa em votar pela mudança que autorizará a importação do medicamento. “Há uma tendência bastante grande em se aprovar, caso haja segurança nas informações”, afirmou à ISTOÉ o presidente da entidade, Dirceu Barbano. Ele e outros quatro diretores se encontram para discutir a alteração em reunião aberta ao público. “Aparentemente, são todos favoráveis”, disse o presidente. Com a reformulação, a substância passará a integrar a lista de classificação C1, que permitirá a prescrição e a importação do composto em forma de medicamento.



Em território brasileiro, a função terapêutica da cannabis vem sendo estudada há décadas por pesquisadores. Mas a Anvisa se voltou para um de seus compostos, o CBD, há cerca de 40 dias, quando tomou conhecimento de que algumas famílias estavam importando sem autorização um remédio à base da substância, alegando impossibilidade de adquirir o produto de maneira legal (leia histórias de pessoas que se beneficiaram com o uso da erva ao longo desta reportagem). Há anos brasileiros recorrem à maconha medicinal, por conta própria, como último recurso para aliviar o sofrimento em situações-limite, como espasmos que impedem a pessoa de caminhar, convulsões e efeitos colaterais drásticos decorrentes de quimioterapia, entre outros sintomas. O que parece ter sacudido a equipe da agência foi a repercussão da história da menina Anny Fischer, 6 anos (leia na pág. 57). Sua história foi contada no documentário “Ilegal”, de Tarso Araújo, autor do “Almanaque das Drogas”, e ela passou a ser uma referência na luta pela importação do medicamento.



Pioneiro na pesquisa sobre o assunto, o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), explica que a maconha possui 66 canabinoides, substâncias de estrutura química peculiar que atuam em receptores do cérebro. “Entre eles, o THC e o CBD são estudados há mais tempo”, afirma Carlini, ele próprio autor de um trabalho de 1980 que demonstrava o uso terapêutico da cannabis em casos de epilepsia. Segundo o professor do laboratório de neurobiologia e comportamento da Universidade de Brasília (UnB), Renato Malcher, os canabinoides têm capacidade de atuar em diferentes males e imitam substâncias produzidas pelo nosso próprio organismo, em um sistema descoberto há cerca de duas décadas chamado endocanabinoide. “Eles controlam a hiperatividade dos neurônios, que são todos interconectados”, diz Lopes. Por isso, são tão citados em casos de convulsões e epilepsia, por exemplo. “Também evitam ruídos mentais no cérebro dos autistas.” A quantidade dos compostos necessários para um tratamento vai depender de cada caso, mas sabe-se que, enquanto o THC é euforizante, o CBD é ansiolítico.



Se, por um lado, está claro que muitos pacientes seriam beneficiados pela regulamentação da maconha medicinal, por outro, ainda há uma grande resistência social em torno da erva. A primeira coisa que vem à cabeça quando se fala em cannabis é um cigarro de maconha. Mas, quando o assunto é saúde, pensar só no baseado é o primeiro erro. Um exemplo que ilustra essa questão é a planta da papoula, que pode gerar tanto a heroína, droga ilícita, quanto a morfina, analgésico muito utilizado para controle de dores fortes. Usar maconha terapeuticamente, portanto, não tem relação com ficar entorpecido – mesmo os portadores de doenças que fumam o baseado afirmam que só o fazem por não haver outra alternativa. Mas, apesar de a prescrição medicinal não ter relação com o uso recreativo da droga, como fazem questão de frisar os especialistas, a liberação dos medicamentos pela Anvisa irá colaborar para quebrar o estigma sobre esse entorpecente e deve contribuir para o debate sobre a sua descriminalização.



Tão difícil quanto a mudança na legislação é a mudança de postura entre a comunidade médica. Pudera, já que, de acordo com a legislação sobre drogas, prescrever uma substância proibida é crime. Há receio, mas também há desinformação. Coordenador do comitê de ética em pesquisa do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), Carlos Henrique Silva afirmou durante o IV Simpósio Internacional da Cannabis Medicinal, realizado em meados de maio, em São Paulo, nunca ter ouvido proposta de uso da planta no tratamento da doença, mesmo com depoimentos de pessoas relatando, durante o mesmo simpósio, que os efeitos da quimioterapia são amenizados pela maconha. A maioria dos médicos dos pacientes entrevistados para esta reportagem também preferiu não se manifestar. Segundo Carlos Vital, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, o uso medicinal da maconha será discutido pela entidade, que pode reconhecer a validade terapêutica.



Colocar todas as ações relacionadas às drogas no mesmo patamar, o do crime, parece ser a maior falha da legislação brasileira. Até órgãos multilaterais se manifestaram sobre a questão. A Organização dos Estados Americanos (OEA), por exemplo, divulgou relatório em maio do ano passado afirmando que despenalizar, e não criminalizar usuários, deve ser a base para políticas de saúde pública. “A lei sobre drogas permite o uso medicinal, mas não há regulamentação. O que falta é a Anvisa dizer como se faz o uso terapêutico”, afirma o advogado Emílio Figueiredo, que defende cultivadores e usuários medicinais. É inconcebível, portanto, que uma pessoa que importe um remédio ou sementes para o tratamento de uma doença própria seja enquadrada como traficante internacional. “Teoricamente, é o que acontece hoje”, diz Figueiredo. Assim, o próximo passo da regulamentação do uso por doentes é garantir que o paciente usuário da droga não seja considerado criminoso.


PIONEIRO
Elisaldo Carlini, da Unifesp, pesquisa as propriedades
medicinais da maconha há mais de 30 anos

Com toda a discussão sobre maconha medicinal no mundo, a indústria farmacêutica começa a lidar com um novo mercado. No Brasil, o laboratório Ipsen tem uma parceria com a empresa GW Pharmaceutical, detentora do Sativex, spray contendo THC e CBD. “Por isso, há planos de promover e distribuir o Sativex na América Latina”, afirma Mauricio de Souza, diretor médico do Ipsen. Por enquanto, a equipe trabalha em um dossiê regulatório antes de solicitar o registro à Anvisa. De acordo com a agência, se houver um pedido de registro, uma área técnica fará a análise e, caso aprovado, o medicamento deverá ser registrado com algum tipo de restrição, já que o CBD entra como substância de uso controlado. Mas o passo mais importante é a pesquisa, ainda restrita e dificultada pela burocracia de importação. Elisaldo Carlini, pesquisador da Unifesp que tenta desde 2010 criar uma agência brasileira da cannabis medicinal, afirma que os entraves do governo impedem o avanço científico. “Tentamos importar compostos e um medicamento para um estudo, mas parou na Anvisa. Agora, para tirar de lá, temos que pagar R$ 9 mil em taxas. Quando um centro de pesquisa de uma universidade pública vai ter esse dinheiro?” Além da Unifesp, a Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto estuda há alguns anos a função da maconha para tratamento do mal de Parkinson. Recentemente, divulgou um novo estudo sobre o uso do CBD para controle de distúrbios do sono ligados à doença. O psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (Grea) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, salienta a importância da produção científica para disseminar os benefícios da maconha medicinal. “A maconha tem propriedade terapêutica e funciona para algumas patologias? Sim. Funciona melhor do que medicamentos que temos hoje? Não sabemos. Acho que faltam mais dados científicos e comparações”, diz. Segundo ele, o fato de a maconha ainda ser ilícita faz com que comitês de ética de universidades e de órgãos públicos resistam em liberar a pesquisa. “O estudo dessa droga necessita que sejamos mais ousados.” Os pacientes agradeceriam.





Fotos: Adriano Machado, João Ramid/AIB; Felipe Varanda/Ag. Istoé,João Castellano/Istoé; Rafael L G Motta

O BRASILEIRO CAMALEÃO DO CRIME QUE ENGANOU TODO MUNDO

por Itamar Melo e José Luís Costa, ZERO HORA 24/05/2014 | 15h04

Um camaleão do crime

Paul Lir: o traficante brasileiro que enganou todo mundo

Catarinense criado em Porto Alegre fez de bobos um cartel colombiano e o governo americano


Paul Lir na juventude e após a prisão, efetuada nos EUAFoto: Reprodução


Paul Lir Alexander fez um grande bem à sociedade entre 1990 e 1993. E também demonstrou um profundo desprezo por ela, ao cometer seus piores crimes.

Ele morava em uma casa luxuosa de Miami com a segunda mulher, Erica Souza. Ao redor, possuía duas outras residências: uma para a sogra, outra para a irmã de Erica, Marjorie. Na mansão, mantinha uma central telefônica com 40 linhas e um centro de monitoramento onde espionava em seis televisores o que ocorria em seus imóveis. Apresentava-se como importador e exportador e mentia ser mestre em Economia.

Naquela época, o crack e a cocaína inundavam as metrópoles americanas, sob o olhar impotente das autoridades. A repressão praticamente se resumia a prender traficantes de esquina ou pequenos distribuidores locais. A polícia e a DEA, agência antinarcóticos americana, percebiam que era necessário atacar a origem do problema: os cartéis colombianos que abasteciam o mercado.

Eles só não sabiam como.

Em 1990, Jerry Speziale, policial que trabalhava infiltrado no submundo, sentia-se perdido na recém-criada força-tarefa da DEA em Nova York. Passava os dias tentando achar uma brecha para chegar aos cartéis, sem sucesso. Numa ocasião, vasculhando os arquivos da agência no computador, deparou com uma referência promissora na ficha de um traficante colombiano: "Negociado com o informante confidencial SGI-2002 em São Paulo, Brasil, em relação a 2 mil quilos de cocaína destinados a Nova York". Ao perguntar sobre o informante para um colega de Miami, ouviu um suspiro profundo do outro lado da linha, antes de receber a resposta:

— Paul Lir Alexander. Um informante incrível, impressionante, com contatos em todos os lugares. Trabalha por muito dinheiro. Fez até serviços de inteligência para o Mossad (serviço secreto israelense)... Mas tem um problema. Ele está na nossa lista negra. Estava fazendo algo para nós no Brasil, onde não só se envolveu em um escândalo de corrupção, mas também ficou sob suspeita de negociar cocaína enquanto trabalhava como informante. A imprensa brasileira o expôs, e a história saiu do controle.

O agente de Miami explicou que, enquanto trabalhava como informante da DEA, o brasileiro havia orquestrado um esquema de corrupção com a polícia fluminense e, ao mesmo tempo, negociado com os colombianos. Quando o escândalo estourou, fugiu para Miami. Inconfiável, tornara-se inútil.

— Qual é o nome dele, mesmo? — insistiu Speziale.

— Paul Lir Alexander. Mas também Pedro Chamorro, José Oscar Arguello, David Coleman. Ele tem uma dúzia de nomes e pseudônimos diferentes. Você nunca vai achá-lo.

Speziale voou para Miami no começo de 1990 e deixou recados em todos os lugares por onde o brasileiro já havia passado ou poderia passar: "Sou da DEA e quero limpar seu nome". Um mês depois, Paul Lir telefonou.

— Me encontre esta noite no lobby do Sheraton — disse o brasileiro.


"Eles vão farejar você a um quilômetro e te matar"

Então com 35 anos, Paul Lir vestia terno de grife, gravata, suspensórios e sapatos italianos. Carregava uma pasta de couro e tinha um Rolex no pulso. Speziale apareceu de jeans e camiseta de ginástica. O brasileiro embarcou-o em uma limusine. Speziale tagarelou durante todo o trajeto. Paul Lir abriu a boca apenas quando eles se sentaram à mesa de um restaurante.

— Deixe-me explicar algo a você, Jerry. Você age como um policial. Você fala como um policial. Você pensa como um policial. Você cheira como um policial. Se você pensa que vai chegar perto dos cartéis, você está louco. Eles vão farejar você a um quilômetro de distância e então vão te matar.

Paul Lir fez então uma explanação sobre como o tráfico funcionava. Os cartéis, explicou, eram uma complexa associação de traficantes, compartimentada em inúmeras células com especializações distintas. Havia produtores, investidores, transportadores, peritos em lavagem de dinheiro, distribuidores. Os grupos responsáveis por cada uma dessas tarefas mudavam de carregamento para carregamento. A compartimentalização garantia que, caso a polícia golpeasse uma etapa do negócio, não conseguiria chegar às demais. Todo o sistema era desenhado para manter o dinheiro separado das drogas, de forma que, se houvesse apreensão de um, o outro não seria localizado. Essa ampla estrutura era controlada por um pequeno grupo de famílias em Cáli.

No livro Without a Badge — Undercover in the World's Deadliest Organization (Sem Crachá — Infiltrado na Organização Criminosa mais Mortal do Mundo), inédito no Brasil, no qual narra a participação de Paul Lir como informante da DEA, Speziale relata que só naquele momento entendeu a magnitude e a sofisticação dos cartéis. Percebeu que os relatórios a que tinha acesso eram inúteis e que "a DEA não havia arranhado nem a superfície" do narcotráfico.

— Como é que a gente rompe tudo isso e pega esses caras? — questionou.

— A única forma de pegar o cartel é se tornar parte dele — rebateu Paul Lir.

A proposta do criminoso era montar uma célula de transporte, aquilo de que os cartéis mais necessitam. Segundo Paul Lir, essa era, também, a área que ele dominava. Seu plano consistia em a DEA criar uma empresa de importação e exportação de fachada, em algum país latino-americano, e oferecer aos cartéis um esquema de transporte entre esse país e os Estados Unidos. A célula fajuta receberia a droga colombiana em uma pista de pouso clandestina na América Central, reabasteceria a aeronave do cartel para que ela voasse de volta à Colômbia e se encarregaria de entregar a cocaína às redes de distribuição norte-americanas. Nesse momento, os policiais tratariam de apreender a droga e prender os distribuidores.

— Uma vez que entreguemos as drogas aos distribuidores, vamos embora com o dinheiro. Uma outra equipe apanha as drogas e os distribuidores. Tem só um detalhe, muito importante. É absolutamente imperativo que nós sempre possamos colocar a culpa pelo fracasso nas outras partes envolvidas no negócio. Porque quem estiver com o carregamento no momento em que o negócio cair estará morto — disse o brasileiro.

Virando o jogo diante de um tribunal do tráfico

Para montar o esquema, Paul Lir exigia que seu nome fosse retirado da lista negra da DEA e reintegrado como informante. Descobrira que a melhor maneira de ficar rico com as drogas não era ser traficante, e sim atuar como informante. A DEA garantia recompensas equivalentes a 20% do valor apreendido. Em troca, ensinaria tudo que sabia ao agente:

— Vou ensiná-lo a pilotar um avião e a construir uma pista de pouso no meio da selva. Vou recriar você.

Speziale conseguiu remover Paul Lir da lista. O brasileiro anunciou que eles iriam às compras em algumas das lojas mais caras de Nova York. Enquanto reconfigurava o estilo do agente, começou a fazer contatos. Conversou com duas figuras secundárias do tráfico colombiano, Avelino Devia Galvis e Alonso Tobon, e convenceu-os de que ganhariam muito dinheiro em caso de uma associação. Dessa forma, levou-os a dizer ao cartel que Paul Lir, conhecido pelos colombianos como Oscar Arguello, e Speziale, rebatizado como Geraldo Bertone, eram confiáveis.

— No momento em que os colocarmos a pensar em dinheiro, eles vão mentir por nós — disse Paul Lir.

Garantiu aos colombianos que estava transportando droga com um novo sócio, Geraldo Bertone, mas que surgira um problema. Eles haviam introduzido uma carga de 400 quilos de cocaína nos Estados Unidos, mas o cliente local não tinha dinheiro para pagar.

— Você sabe de alguém que queira essa carga? — questionou Paul Lir.

Chegaram a mostrar o suposto carregamento a um representante dos colombianos, Freddy Herrera, sobrinho de Helmer Herrera, um dos maiores traficantes de Cáli. A droga tinha vindo do depósito de evidências da DEA. Herrera relatou ao cartel que a mercadoria era autêntica.

Dias depois, quando os colombianos finalmente levantaram o dinheiro para pagar a carga, Paul Lir informou que a venda já não seria possível: o cliente original havia levantado o recurso. Os 400 quilos de cocaína estavam de volta aos depósitos da DEA, mas haviam alcançado o objetivo: convenceram os colombianos de que Arguello e Bertone eram de confiança e lidavam com muita droga.

Em abril de 1991, a primeira vítima mordeu a isca. Um grande traficante colombiano, José Lizardo Losada, recebera garantias de Avelino, Alonso e Freddy de que o esquema de transporte do brasileiro era autêntico e estava disposto a usá-lo.

Paul Lir foi à Colômbia e contou a Lizardo que tinha uma empresa de importação e exportação na Guatemala chamada Genesis, com pista para pouso no meio da selva. Garantia que poderia receber carregamentos da Colômbia e levá-los até Nova York. Lizardo propôs que o esquema do brasileiro transportasse 767 quilos de cocaína, US$ 2,5 mil o quilo. Avelino e Alonso, como intermediários, receberiam uma comissão polpuda.

Quando tudo estava pronto, incluindo a montagem de uma empresa de fachada na Guatemala, Lizardo convocou de novo Paul Lir à Colômbia.

— Seguiremos adiante se você nos der um membro da sua família como garantia — disse o chefão.

Paul Lir telefonou para a cunhada, Marjorie de Souza, em Miami.

— Preciso que você passe umas duas semanas com uns amigos meus em Bogotá.

Sem saber que era refém e seria morta caso algo desse errado, Marjorie viajou para a Colômbia. Ficou em um hotel de luxo, vigiada por guarda-costas — na realidade, eram assassinos.


Paul Lir com a segunda mulher, Erica | Imagem: Reprodução



Em 12 de agosto de 1991, o avião com 767 quilos de cocaína pousou na pista construída por Paul Lir no meio da selva guatemalteca para a DEA. A carga valia na época US$ 59 milhões (mais de US$ 100 milhões em valores atualizados). No dia seguinte, foi levada ao aeroporto em três caminhões e embarcou para Nova York em um avião da PanAm. Foi direto para os depósitos da DEA.

Como havia dito aos colombianos que o transporte seria por navio, só um mês depois Paul Lir confirmou o sucesso da operação.

— As camisetas estão aqui, meu amigo, e elas são muito boas — disse ele, por telefone, a Lizardo.

Mas uma dificuldade surgiu. Lizardo disse a Paul Lir que a droga deveria ser entregue a três destinatários diferentes. Era um teste: se todas dessem errado, o traficante saberia que a culpa era do brasileiro.

— Quem estiver com a droga quando o carregamento cair é a pessoa que vai morrer — disse Paul.

A primeira entrega, de cem quilos, deveria ser feita a um colombiano chamado Mario, que mobilizou um auxiliar, Julio Mendez Yepez. Julio chegou em uma van azul ao local do encontro, uma lanchonete. Paul disse-lhe que levaria a van até o depósito, colocaria a droga em seu interior e a deixaria estacionada em determinado ponto.

Num canto de mesa, um matador ostentava arma

A polícia descobriu que a van entregue a Paul Lir estava com o licenciamento vencido. Disfarçados de patrulheiros de trânsito, os agentes abordaram Julio, usando como pretexto o problema nas placas — e então encontraram as drogas, como se fosse por acaso. Também simularam a apreensão dos outros 667 quilos. O estratagema permitia a Paul Lir e a Speziale atribuir a culpa pelo malogro do carregamento à célula de Mario. Como parte da operação, Paul telefonou a Mario, simulando fúria:

— Tem alguma coisa acontecendo, porque a polícia acabou de dar uma batida no meu depósito.

Com o revés, veio a caça às bruxas. O brasileiro foi convocado à Colômbia. Quando chegou à sala de conferências de um hotel de luxo em Bogotá, percebeu que não era uma simples reunião. Havia grades em todas as aberturas, paredes de aço e seguranças. Em uma ponta de mesa, estava um assassino do cartel, com a arma à mostra. Se Paul Lir fosse considerado culpado pela perda dos 767 quilos, morreria ali mesmo. O brasileiro não se intimidou:

— Pagamos ao nosso pessoal na Guatemala muito dinheiro para garantir o sucesso desse carregamento. Mas agora nosso negócio foi infiltrado pela polícia. Teremos de mudar tudo. Sofremos uma perda tremenda e devemos ser ressarcidos.

Para reforçar seu discurso, entregou aos traficantes jornais de Nova York que noticiavam a apreensão. Eram exemplares falsificados pela DEA, dizendo que a polícia havia pego a droga por acaso. Enquanto os homens liam, o informante continuou:

— Onde está Mario? Eu estou aqui, mostrando minha cara. Mario, o culpado, não está. Por quê?

Também partiu para o ataque. Disse que alguém teria de se responsabilizar por sua perda, já que a culpa não fora dele. Foi tão convincente que o absolveram, pediram-lhe desculpas e prometeram indenizá-lo. Sua cunhada foi libertada, ilesa.

Atrás das grades, mas sem perder a pose

No dia 19 de abril de 1993, Paul Lir Alexander desembarcou em Miami com a segunda mulher, Erica Souza. Foi preso pela DEA no próprio aeroporto. Passaria os 17 anos seguintes encarcerado, primeiro nos Estados Unidos, depois no Brasil.

Não se sabe ao certo por que ele decidiu viajar a um país onde era procurado. Quando seu esquema foi desmascarado, correu a Bogotá para dar explicações a Pacho Herrera, o chefão do tráfico para quem transportava a droga. Herrera disse que o brasileiro deveria ficar por lá, onde seria protegido, e jamais voltar a pôr os pés nos EUA. Mas Paul Lir sabia que, quando vazasse a informação de que ele trabalhara para a DEA, seria um homem morto na Colômbia.

Uma possibilidade é que tenha acreditado que passaria a conversa nos americanos mais uma vez. Durante a vida toda, sempre conseguira enrolar todo mundo e tinha uma autoconfiança sem limites.

— Ele achava que nada era impossível — conta a primeira mulher, que morava em Miami na época e esteve na casa do ex-marido no dia da captura.

A Justiça americana condenou o brasileiro a 23 anos de prisão pelo tráfico de 1,8 tonelada de cocaína — o total apreendido nos dois últimos carregamentos de transformadores. Depois, a pena foi reduzida para 13 anos. A investigação apontou que o traficante amealhara US$ 20 milhões em dinheiro, sem contar valores em uma série de contas bancárias, empresas e imóveis, além de iates na Itália e na Espanha. Algumas listas apontam Paul Lir como um dos 20 traficantes mais ricos da história, com fortuna avaliada em US$ 100 milhões a US$ 170 milhões.

Fotos do tempo em que estava preso na Flórida mostram que, mesmo encarcerado, o traficante não abria mão da vaidade. Esculpia o corpo à base de musculação, andava sempre com óculos escuros de grife e fugia do uniforme da prisão.

— Não sou bandido — justificava.

— Quem fez o que tu fizeste é bandido, sim — disse-lhe a mãe.

A idosa visitou o filho três vezes no presídio, em 1995. Paul Lir mandou as passagens aéreas para ela viajar de Porto Alegre a Miami, onde passaria uma temporada de três meses na Flórida. A mãe permaneceu 18 dias na casa do filho em Miami, com Erica, e decidiu voltar ao Brasil por problemas de saúde.

— Foi a última vez que vi meu filho. Ele estava bem, mas magro, perdendo os cabelos. Na verdade, acho que ele me chamou para vigiar a Erica. Ela saía todas as noites para dançar nas boates. Mas eu não ia ficar de babá dela — conta a idosa.

Enquanto pagava por seus crimes nos Estados Unidos, Paul Lir tentava safar o butim amealhado no Brasil. Ele tinha duas dezenas de imóveis em Minas e no Rio, incluindo galpões, casas, salas comerciais, sítios e fazendas, além de nove veículos — automóveis e caminhões. Para evitar o confisco, simulou a venda de parte do patrimônio para o sogro — 12 salas comerciais no Edifício Barra Space Center, na Barra da Tijuca, e dois terrenos em um condomínio na mesma região. Sargento da PM do Rio aposentado, o homem nem de longe teria recursos para o investimento. Acabou implicado na Justiça. Erica abandonou o marido.

Paul Lir estava preso havia uma década quando voltou a ficar sob os holofotes em razão da publicação do livro do agente da DEA Jerry Speziale. Na obra, o policial revelava a colaboração com o brasileiro e contava como, usando o que aprendera com Paul Lir, continuara a realizar operações, a apreender toneladas de cocaína e a prender traficantes. "Paul estava na cadeia, mas a voz dele seguia sempre comigo, sussurrando em meu ouvido, dizendo que eu não era bom o bastante, esperto o bastante, habilidoso o bastante, para fazer as coisas tão bem como ele faria. Às vezes, eu penso em Paul, meu mentor no negócio das drogas. O trabalho que fizemos juntos provocou um estrago tremendo no negócio de cocaína de Cáli", escreveu Speziale.

O brasileiro não gostou de ser retratado. Mandou dizer que mataria Speziale e a família. Também se enfureceu com a notícia de que sua vida viraria um filme — que não chegou a ser finalizado.

Em 2005, Paul Lir foi extraditado ao Brasil para responder a processo por tráfico internacional em Minas Gerais. Ficou até março de 2006 na carceragem da Polícia Federal, em Belo Horizonte.

— Ele era bem falante e articulado. Passava os dias contando histórias para outros presos — recorda o advogado Adalberto Lustosa de Matos, seu defensor.

Em maio, foi condenado a 42 anos de prisão pela 9ª Vara Criminal Federal e recolhido à Penitenciária Nelson Hungria, em Contagem. Recorreu e conseguiu reduzir a pena a 27 anos e nove meses — até janeiro de 2037. Foi recolhido a uma cela individual de dois metros quadrados, com TV e rádio, em uma ala exclusiva para condenados pela Justiça Federal.

Cereais via Sedex

Paul Lir gostava de conversar apenas com um boliviano e com um apenado conhecido por Jorge Tadeu, apontado como um dos coordenadores do tráfico na fronteira do Brasil com o Paraguai, integrante do bando de Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. Mantinha um celular dentro da prisão, no qual era sempre visto a falar em inglês.

Embora preso, não perdeu a pose. Vivia bem penteado e com óculos escuros. Vestia trajes esportivos e, nas duas horas de sol diárias, caminhava pelos corredor. Preocupado com a alimentação, evitava refrigerantes e mandava comprar sucos diet, leite de soja e outros produtos de baixo teor calórico. Cereais chegavam para ele via Sedex.

— Ele me ajudou muito. Quando eu não tinha dinheiro, mandava comprar comida para mim — lembra um ex-detento gaúcho que conviveu com Paul em Contagem, localizado por Zero Hora no Vale do Taquari.

Paul Lir convenceu o gaúcho a chamar a cunhada para visitá-lo.

— Ele tinha visto uma foto dela e queria namoro. Pagou passagem aérea para minha mulher e para a minha cunhada, mas ela se assustou e não passou da portaria da cadeia — relata o ex-apenado.

Das 17 pessoas que o visitaram, 11 eram mulheres, algumas até 30 anos mais jovens. Na cadeia de Contagem, as visitantes podiam dormir com os presos na noite de sábado para domingo.

Por ter sido extraditado dos EUA, Paul Lir exigia tratamento VIP.

— Era muito autoritário e tinha mania de grandeza. Queria uma vida de príncipe dentro da cadeia, cobrava que a cela tivesse pintura diferenciada, que a namorada não fosse revistada — recorda o advogado Adalberto Lustosa de Matos.

O criminalista lembra que Paul Lir insistiu para ser transferido para uma penitenciária administrada pela ONG Associação de Proteção e Assistência aos condenados (APAC), na qual presos ajudam na administração e têm as chaves da cadeia.

— Perdi a paciência com ele. Não iria passar atestado de burrice, pedindo à Justiça algo que seria negado — afirma o advogado, que também defendeu Fernandinho Beira-Mar.

Matos lembra que Paul Lir era muito "chorão". Tentava sempre protelar pagamentos — mas quitou em dia os honorários.

Cocaína escondida dentro de transformadores

A desenvoltura e a lábia de Paul Lir Alexander entusiasmavam a agência antinarcóticos americana. Os policiais celebravam a habilidade do brasileiro para enganar os colombianos, responsável por prisões e apreensões sem conta. Até o dia em que descobriram que também estavam sendo feitos de bobos. Em 1993, com a ajuda da polícia brasileira, a DEA deu-se conta de que seu precioso informante vinha introduzindo quantidades colossais de cocaína nos EUA.

Paul Lir começou a enganar os americanos em outubro de 1991, quando selou uma parceria com José Longuinho de Arruda, ex-condenado por tráfico de Minas Gerais que conhecera no escritório de advocacia de um amigo, na Cinelândia, no centro do Rio. A ideia da dupla era criar uma estrutura para enviar cocaína aos Estados Unidos dentro de transformadores de energia elétrica. Eles simulariam a exportação dos equipamentos, fabricados no Brasil, e os remeteriam pejados de droga.

A dupla formou uma quadrilha de 21 pessoas, recrutando parentes e conhecidos de Erica Souza (a segunda mulher de Paul Lir) e amigos de Longuinho, incluindo um compadre dele, Francisco Rebecchi, dono de uma transportadora semifalida em Belo Horizonte. Paul providenciou documentos falsos para os comparsas, divididos em células no Rio, em Minas Gerais, em Rondônia, em Miami, em New Jersey e, mais tarde, em Mato Grosso. O comando estava nas mãos de Paulo Ferreira e José Paulo Rothstein — dois novos nomes adotados por Paul Lir.

O esquema funcionou por meio de três empresas de fachada. No Brasil, a quadrilha abriu a Eletricbras Trading Importação e Exportação Ltda (depois chamada de Trafobras Comércio Exterior Ltda), com "fábricas" em Minas Gerais e "escritórios" no Rio de Janeiro. Essa era a companhia que exportava os transformadores fabricados no Brasil.

Em Miami, Paul fundou a Iluminare Manufacturing Inc e, em Nova Jersey, a Ameritraf Transformers Distributions Inc, sob controle de um brasileiro e de um nicaraguense, Walter Calderon, chamado de Comandante Tonho. Essas companhias eram as supostas importadoras dos transformadores.

O braço mineiro do bando estabeleceu galpões em Contagem (MG), onde trabalhavam Rebecchi, o gerente, e mais sete pessoas, incluindo um eletricista e dois engenheiros nicaraguenses, especialistas na montagem dos transformadores comprados legalmente da Siemens, em São Paulo.

No norte do país, o comando era de Longuinho, que arrendou uma fazenda em Jaru, Rondônia. Lá desciam pequenos aviões tipo Cessna que vinham da Bolívia carregados de cocaína. Depois de dois carregamentos realizados em março de 1992 (de uma tonelada e de 750 quilos), essa base foi transferida para uma fazenda de 1,6 mil hectares, em Nova Canaã do Norte (MT), comprada pela quadrilha. Os aviões abarrotados de cocaína começaram a descer lá, em uma pista pavimentada que dava inveja aos vizinhos, multinacionais e grandes latifundiários de soja. Para disfarçar, o grupo abriu uma empresa agropastoril de fachada.

Desembarcada na fazenda em Mato Grosso, a droga era escondida em subterrâneos. Na sequência, ia para dentro de toras de árvores. Caminhões com as toras viajavam até os galpões em Minas Gerais. Lá, os especialistas em transformadores recrutados pela quadrilha retiravam uma das bobinas dos equipamentos e colocavam no lugar uma caixa de chumbo do mesmo tamanho, com 37 quilos de cocaína pura. Por fora, punham um óleo isolante que impedia a identificação da droga até por cães farejadores.

De Minas, os transformadores seguiam para o Rio de Janeiro, onde a papelada de exportação era preparada por despachantes aduaneiros contratados por Paul Lir. Em seguida, os equipamentos seguiam de navio para os falsos clientes em Miami e Nova Jersey. Depois que a droga era vendida nos Estados Unidos, os dólares entravam no Brasil por meio de um esquema similar: vinham dentro de caixas de som e amplificadores importados pela empresa de um amigo de Paul, que jamais foi responsabilizado e atualmente tem uma transportadora na Califórnia.

Na primeira "venda", Paul Lir enviou, como um teste, apenas transformadores, sem drogas. Eles entraram nos Estados Unidos sem dificuldades. Em dezembro, remeteu cinco equipamentos para Miami, desta vez com 165 quilos de cocaína. Eles foram examinados na alfândega e liberados. Investigações da Polícia Federal apontaram mais tarde que a quadrilha enviou, ao todo, 343 transformadores com cerca de 37 quilos de cocaína pura cada um, o que totalizaria 10,6 toneladas de droga despejadas em território americano durante apenas um ano, de dezembro de 1991 a dezembro de 1992.

Agentes da DEA foram levados a show sertanejo

A traição eclodiu quando Paul Lir e Jerry Speziale tentavam uma operação que usaria o Brasil como escala para um carregamento de fachada da DEA. A escolha do país havia sido insistência do brasileiro. Entre uma remessa e outra de transformadores, Paul Lir recebeu Speziale e outros agentes da DEA em São Paulo. Usando ternos Armani e sempre cercado de guarda-costas, levou os americanos em sua limusine a um show de Leandro e Leonardo. Conduziu-os à beira do palco e disse que uma empresa sua estava promovendo o espetáculo. Na verdade, Paul Lir tentava entrar no ramo, chegando a fazer a sociedade com uma empresa paulistana.

O império de Paul Lir começou a ruir em 3 de dezembro de 1992, data da prisão de Francisco Rebecchi, o gerente do braço mineiro do bando, em Belo Horizonte. Ele foi capturado ao tentar vender 17 quilos de cocaína a um policial disfarçado. Na cadeia, no Rio, entregou o esquema à Polícia Federal. Daí para a frente, a quadrilha deu início a uma operação "salve-se quem e o que puder".

Paul Lir ainda tentou reverter a situação. Telefonou a Jerry Speziale e disse que tinha informações sobre um carregamento enviado a Miami por um traficante chamado José Paulo Rothstein. Já que a droga que enviara com outro nome seria apreendida, pensou Paul Lir, ele pelo menos poderia receber a comissão como informante.

Mas a equipe da DEA em Miami investigou e descobriu que Rothstein e Paul Lir eram a mesma pessoa. "Paul ensinou-me tudo que ele sabia sobre o tráfico de drogas. E então ensinou-me sobre traição. Olhando para isso agora, tenho de admitir que Paul era brilhante", desabafou Speziale em seu livro.

Quando o esquema foi descoberto, a quadrilha tinha estocados 1,5 mil quilos de cocaína na fazenda em Nova Canaã do Norte. As apreensões feitas com a quadrilha, somadas, foram as maiores registradas até então no Brasil.

O rastro indecifrável de um mestre da mentira e do despiste

Em agosto de 2010, Paul Lir Alexander, um dos maiores traficantes de que se tem notícia, fugiu da prisão e nunca mais foi visto. E quem abriu as portas para ele foram as autoridades brasileiras.

Uma semana antes, havia obtido a progressão para o regime semiaberto. Deixou o presídio em Contagem e foi para a Penitenciária José Maria Alkmin, em Ribeirão das Neves, nas imediações de Belo Horizonte. No dia 11, foi beneficiado com uma saída temporária de sete dias — que se estende até hoje.

Seu paradeiro é um mistério. Parentes e amigos que tiveram contato com ele por telefone nos dias que se seguiram à fuga concordam em um ponto: Paul Lir teria fugido com a namorada de então, uma mineira, e entrado no Paraguai por Ciudad del Este. Dias depois, a mulher ligou para um parente do traficante no Rio Grande do Sul e, aos prantos, relatou que ele havia desaparecido.

Segundo a namorada mineira, Paul Lir teria atravessado a fronteira para o lado brasileiro, indo de carro até a entrada de uma fazenda onde ficaria refugiado. Teria dito que faria contato em breve. Se não se comunicasse, é porque tinha morrido.

Cerca de dois meses depois da fuga, uma pessoa enviou e-mail para um amigo de Paul Lir que vivia em Miami, dizendo que o brasileiro tinha marcado um encontro, mas não aparecera. Pessoas próximas repetem essas informações como prova de que o foragido estaria morto.

Mas a mãe de Paul Lir, uma aposentada de 79 anos, garante que ele está vivo:

— O senhor acha que ele está morto? Está nada. Está vivo. E bem vivo. Mais vivo do que eu. Não sei se posso falar isso, mas ele está por aí. Diz que ele fez uma plástica na cara, implantou cabelo e tirou as identificações da mão. "A senhora nem vai conhecer seu filho", me disseram. Mas é claro que eu vou conhecer, até se o virarem do avesso.

Afirma que o filho continuou a telefonar depois da fuga. Teriam sido cerca de quatro ligações. O traficante fazia chamadas a cobrar e teria inclusive enviado dinheiro para ela cobrir o custo dos telefonemas.

— Quando ele fugiu, não fiquei sabendo. Depois, ele ligou pra mim lá do... Ai, tenho até medo de ele saber que estou falando isso aí... ele ligou lá do Paraguai. Ele disse que tinha passado da ponte, que estava bem, que estava com a namorada.

Segundo a idosa, Paul Lir disse na primeira ligação que estava com saudade e que mandaria duas pessoas buscarem-na em Porto Alegre para ela ficar com ele, porque ele estava fora da prisão. Os emissários designados seriam a namorada e um motorista. Ela se recusou a ir.

— Se tu estás com saudade, tu vens aqui. Esse pessoal pode até me matar no meio da estrada.

Pau Lir riu. Então, disse:

— Não posso ir. Fugi da prisão. Ganhei um semiaberto e não voltei.

— Mas onde tu estás? — questionou a mãe.

O filho custou a contar.

— A senhora não vai contar pra ninguém?

— Tu podes me dizer. Não vou falar, tu és meu filho, por que eu vou falar?

Foi então que Paul Lir revelou estar no Paraguai, com um carro alugado.

— E se uma blitz te pega? — questionou a mãe.

— Não tem perigo, eu tomo cuidado.

— Tu não estás usando o teu nome, estás? — quis saber a mãe.

— Isso aí é melhor a senhora ficar quieta, não falar nada — cortou o traficante.

Mãe do criminoso ficou duas vezes sem moradia

Em um telefonema posterior, segundo o relato da mãe, Paul Lir revelou que havia enganado a namorada, fazendo-a pensar que tinha morrido.

— É a primeira vez que estou falando isso, mas ele continuava falando comigo por telefone. Ele contou que tinha deixado a namorada no hotel e que tinha dito para ela que, se não aparecesse até certo horário, era porque alguém tinha matado ele. Mas ele mesmo que se matou. Fingiu, né? Se mandou. Queria começar outra vida, mas não ia levá-la junto. Foi ele mesmo quem me contou isso. Aposto o que quiser como está vivo.

Em outra conversa, a idosa não abriu mão de repreender Paul Lir:

— Tu mataste os filhos dos outros. Agora estão matando o teu — disse ela.

— Como assim, matei o filho dos outros? — perguntou o traficante.

— Mataste. Vendeste bastante droga e mataste os filhos dos outros. Agora estão matando o teu. Está lá, feito um louco.

Paul Lir ficou em silêncio.

Hoje, a mãe guarda rancor dele. Segundo a idosa, três anos atrás, tempos depois do último contato, ele mandou vender o apartamento em que ela morava havia duas décadas em Porto Alegre. Ela conta, entre lágrimas, que recebeu a notificação de que o apartamento tinha sido vendido e que precisaria desocupá-lo.

— Eu não tinha dinheiro nem para a mudança. Liguei para um filho que é pobre, coitadinho, para ele me buscar, que eu não tinha para onde ir — conta a mulher, que hoje mora de aluguel em uma casa de fundos, com quarto, sala e cozinha.

A primeira mulher de Paul Lir afirma que ele não teve nada a ver com a venda. Assume ter negociado o imóvel para pagar dívidas vinculadas a ele. Mas a mãe está convencida de que o filho está por trás do despejo e que inclusive teria sido visto em Porto Alegre, por um familiar, em uma vinda para tratar do negócio.

Segundo a idosa, foi a segunda vez em que se viu na rua por culpa de Paul Lir. Quando ele ainda vivia no Rio Grande do Sul, ela serviu de fiadora para um de seus negócios. Ele não pagou a dívida, e ela teve de entregar a casa em que morava, em Canoas.

— Não quero vê-lo nunca mais. Ele fez uma sujeira comigo. Tenho muito medo dele. Eu tinha saudades, mas depois que ele me botou para a rua, não tenho mais. Só raiva. Minha filha diz: "Mãe, a gente não deve ter raiva, que ele já morreu". Eu respondi: "Morreu? Ele já morreu três, quatro vezes. Morrer, para ele, é mudar de nome".

Um mês depois da fuga, mega apreensão no RS

Foto: Ronaldo Bernardi, Agência RBS



O nome Paul Lir Alexander passou a ser conhecido pela Polícia Civil gaúcha em 2010. Em setembro daquele ano, agentes do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) apreenderam 358 quilos de entorpecentes (201 de cocaína e 157 entre lidocaína e cafeína) em Mariana Pimentel, no sul do Estado (ao lado). A droga estava enterrada em tonéis plásticos em uma propriedade rural.

Dias depois, o delegado Luis Fernando Oliveira foi convidado para uma reunião no Consulado dos Estados Unidos em São Paulo. Foram recebidos por policiais da Drug Enforcement Administration (DEA), que trabalhavam na capital paulista. O objetivo do encontro era troca de informações sobre o narcotráfico. A origem da droga (Bolívia), a quantidade e o modo de escondê-la despertaram a atenção dos agentes norte-americanos. Paul Lir estava foragido havia um mês e poderia estar envolvido no esquema.

— Desde então, tentamos localizá-lo, descobrimos parentes e pessoas do círculo de amizade no Estado e até no Exterior — diz o delegado Luis Fernando.

Para fugir de credores e autoridades, Valdelir tornou-se Paul Lir

Antes de ser Paul Lir, ele se chamava Valdelir. E foi registrado duas vezes. Na primeira, a mãe seguiu escondida até o cartório. A relação com o marido era marcada por brigas e ameaças. Com frequência, ele ameaçava fugir com os filhos. Por isso, resolveu registrá-los com o nome do avô, Alexandre. O espaço reservado ao pai na certidão ficou em branco. Surgia assim Valdelir Alexandre, nascido no dia 27 de julho de 1956, em Tubarão, Santa Catarina.

O segundo registro ocorreria no Rio Grande do Sul, anos depois. A família havia se mudado para Porto Alegre em 1960. Valdelir passou a morar na casa do avô materno, na Vila Jardim, com a mãe e três irmãos. O pai deixou-os na Capital e viajou para São Paulo. Só reapareceu quatro anos depois.

Quando voltou, empregou-se como motorneiro nos bondes da Carris e levantou uma casa nas imediações da atual Avenida Castelo Branco. A família cresceu: nasceram mais duas crianças. Um dia, o pai decidiu que era hora de registrá-las em seu nome. O primogênito virou Valdelir Oliveira da Cruz.

De Porto Alegre, a família mudou-se para Cachoeirinha, em uma vila perto do Rio Gravataí e, a partir de 1969, para a Rua Machadinho, no bairro Rio Branco, em Canoas. Em 1972, graças a uma bolsa de estudos da Secretaria Estadual de Educação, Valdelir cursou a 4ª série do ginasial (equivalente à 8ª série do Ensino Fundamental) no tradicional Colégio Rosário, em Porto Alegre.

Em casa, a rotina era de brigas entre o pai e a mãe. Uma noite, quando chegava da escola, Valdelir presenciou uma discussão violenta. Tinha 16 anos.

— Vou acabar com a raça dele — anunciou.

Atravessou a rua, apanhou uma acha de lenha em um armazém próximo e deu uma paulada no pai.

— O velho saiu para a rua, e ele continuou batendo. Parecia que não era ele, o meu filho, uma criança fazendo aquilo. Depois o velho correu atrás dele e o jogou em uma cerca de arame. Os dois nunca mais se deram — conta a mãe.

Assustado com ameaças feitas pelo pai, Valdelir saiu de casa e deixou de ir à escola.

Aos 16 anos, Valdelir só usava calça social, cultivava uma vasta cabeleira e passava horas na frente do espelho. A vaidade do rapaz chamava a atenção na vizinhança da Rua Machadinho.

— Ele era um bonequinho. Bonito demais. Tinha mania de enrolar o cabelo, alisar, fazer umas voltas. Vestia terno até para ir na esquina. As pessoas pensavam que ele era bicha — conta a primeira mulher.

Ela começou a namorar Valdelir nessa época. Eram vizinhos em Canoas e trabalhavam no centro de Porto Alegre. Com frequência, tomavam o mesmo ônibus. O rapaz começou a puxar conversa e se oferecer para pagar a passagem da moça, alguns anos mais velha e mãe de uma menina de seis meses. Em 1975, os dois tiveram um menino.

A garota namorou Valdelir, mas se casou com Paul Lir. Por volta de 1984, ele foi a Minas Gerais disposto a adotar ares americanos. Entrou em uma delegacia e saiu de lá como Paul Lir Alexander, nome constante da carteira de identidade número 2391639. Safou-se de todos os credores que o procuravam com o nome antigo.

O menino nascido em SC foi criado em Porto Alegre I Imagem: Reprodução



Trambiques em Porto Alegre e empresa de fachada no Rio

Em janeiro de 1985, oficializou o casamento com a namorada e se mudou para um confortável apartamento de 153 metros quadrados no Residencial Quintanares, na Avenida Padre Cacique, em Porto Alegre, distante três quadras do Beira-Rio. Até então, era o melhor condomínio do bairro Menino Deus, com vista privilegiada para o Guaíba, ginásio de esportes e duas piscinas térmicas.

Como de costume, o aluguel não foi pago. Fiadora, a mãe teve de vender a casa para quitar a dívida.

— Ele e a mulher só queriam saber de viver bem, à custa dos outros — reclama a idosa.

O agora Paul Lir se apresentava como agente de exportação de sapatos e dono de fábrica em Novo Hamburgo. Depois foi para São Paulo, onde tirou uma nova carteira de identidade, sob o número 19555890, com o mesmo nome americanizado. Instalou-se em Franca, meca do calçado paulista. Criou uma empresa fantasma em uma casa na Vila Santa Cruz, onde ele nunca morou e jamais fabricou um pé de sapato. Sumiu da cidade meses antes de a polícia desarticular uma quadrilha que traficava cocaína para os EUA em embalagens de calçados.

A primeira mulher conta que, na sequência, passaram um ano no Panamá, onde o brasileiro posava de exportador de calçados. Em 1985, estabeleceram-se em Miami, nos Estados Unidos.

— Ele foi para lá sem falar nada de inglês e aprendeu rapidinho — afirma a mulher.

O começo da carreira de falcatruas, com o nome de Valdelir Oliveira da Cruz, está documentado nos arquivos do Tribunal de Justiça do Estado. Parte dos processos foi localizada por Zero Hora. O mais antigo é datado de setembro de 1975. Aos 19 anos, Valdelir foi fichado pela polícia por causa de um cheque sem fundos (equivalente a R$ 2,4 mil).

Em setembro de 1977, Valdelir comprou na Companhia Geral de Assessórios, uma concessionária da GM, um flamante Chevette azul metálico zero quilômetro. Pagou cerca de 40% do automóvel com um cheque frio (R$ 11,2 mil). Dois meses depois, o carro foi apreendido, e Valdelir acabou condenado a pagar uma multa (R$ 2,7 mil) que jamais quitou. Há também registros de apreensão de um Passat financiado e não pago. Por causa de dívida com um restaurante, ele chegou a ter decretada a sua prisão cível por 20 dias, em março de 1981. Até fevereiro de 1987 a Justiça cobrou da Delegacia de Capturas a prisão de Valdelir, mas ele jamais foi encontrado. Em Goiás, aplicou um golpe numa agência do Banco Real. A Justiça mandou apreender um caminhão e um Uno do avalista.

Em 1988, Paul Lir Alexander voltou de Miami com a meta de ampliar "frentes de trabalho" no Rio. O primeiro passo foi abrir a Anglobrás Mineração Ltda, que venderia diamantes brutos e manufaturados para a Diamondex Incorporated, com sede em Miami, da qual Paul também era o dono.

Nessa época, ele costumava chegar ao Rio de jatinho, fazia-se passar por empresário americano e forçava o sotaque de "gringo". Foi quando encantou-se com Erica Souza, ex-dançarina do programa de TV Cassino do Chacrinha. Paul levou a ex-chacrete para viver com ele em Miami.

No Rio, Paul Lir propôs uma parceria com delegados das polícias Civil e Federal. Pelo acerto, ele forneceria informações sobre carregamentos de drogas e ficaria com metade do que fosse apreendido. O esquema ruiu em 1990, levando o traficante a constar da lista negra das autoridades americanas, da qual foi resgatado pelo agente Jerry Speziale.

OS PERSONAGENS

Paul Lir Alexander = Começou a carreira criminosa em Porto Alegre, aplicando golpes com o nome de Valdelir. Com uma nova identidade, migrou para o tráfico internacional de drogas ao mesmo tempo que atuava como informante de autoridades antidrogas americanas.

Jerry Speziale = Agente da Drug Enforcement Administration (DEA), órgão de repressão às drogas dos Estados Unidos, usou Paul Lir como informante para desarticular cartéis da Colômbia. Ficou famoso com o trabalho e escreveu um livro contando a "parceria" com o brasileiro.

Primeira mulher de Paul Lir - Na juventude, namorou Valdelir, quando moravam em Canoas, e casou-se com Paul Lir em Porto Alegre.Viveram no Panamá e nos EUA. Separada, mora em Porto Alegre em casa de parentes. Pediu para não ser identificada.

Erica Souza - Ex-chacrete, passou a viver com Paul Lir nos Estados Unidos após ele se separar da primeira mulher. Mãe de dois filhos de Paul Lir, ela o abandonou quando ele foi preso. Mora em Miami.

Mãe de Paul Lir = Foi vítima dos trambiques do filho mais velho, ficando duas vezes sem casa para morar. Com ajuda de outro filho, vive em pequena casa alugada na Região Metropolitana. Pediu para não ser identificada.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

GUERRA CONTRA TRAFICANTES É INEFICIENTE




O Estado de S. Paulo, 23 de maio de 2014 | 11h 32


Guerra contra traficantes é ineficiente, avaliam Kleiman e Mejía. Professores das UCLA e da Universidade dos Andes afirmam que o combate aos produtores de drogas custa mais do que os possíveis benefícios propiciados por ação

Luciano Bottini Filho


SÃO PAULO - A guerra contra as drogas custa mais do que os benefícios que pode proporcionar à sociedade. Os professores Mark Kleiman, da Escola de Política Pública da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), e Daniel Mejía, da Universidade dos Andes, na Colômbia, tiveram a mesma conclusão com base em estudos econômicos no painel internacional nos Fóruns Estadão Brasil 2018 sobre Segurança na manhã desta sexta-feira, 23.


Werther Santana/Estadão
'A ajuda internacional não compensa os custos que os países têm para controlar as drogas', diz Mejía

"Políticas de redução de oferta de drogas são basicamente ineficientes em reduzir a oferta", disse Mejía, sobre a atividade de governos em atacar produtores de entorpecentes. Pior, segundo ele, a estratégia só aumenta os recursos gastos com segurança e transfere para os países produtores o ônus de resolver o problema de drogas nos países consumidores, assumindo todas as mortes e criminalidade da guerra contra o narcotráfico.

"A ajuda internacional não compensa os custos que os países têm para controlar as drogas. O objetivo desses países deve ser reduzir a violência e tirar os grupos mais violentos do mercado", afirmou Mejía.

Kleiman também acredita que não valha a pena gastar esforços para tentar conter todos os traficantes indiscriminadamente. É preciso reduzir os efeitos colaterais do mercado ilícito de drogas. O uso do aparelho repressivo do Estado deve, para ele, ser racional e tentar restringir o tráfico explícito, nas ruas, e sua violência associada. "O objetivo não é colocar mais traficantes na cadeia, o objetivo é forçá-los a uma forma de mercado ilícito mais discreto."

Esconder o tráfico, de acordo com o norte-americano, pode até ser "indesejável socialmente", "mas isso não imporá problema de segurança nenhum". Kleiman explica que traficantes de rua e usuários nesses ambientes trazem mercadorias valiosas e somas de dinheiro em mãos e precisam proteger-se de forma armada, o que potencializa a violência. O tráfico ideal, a seu ver, ocorre por entregas ou telefone.

O professor da UCLA acredita que prisões de traficantes não melhorem o sistema."A única maneira de reduzir o poder das facções nas prisões é reduzir a população carcerária e o número de pequenos traficantes presos", sugeriu Kleiman.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

A MARCHA DE DESINFORMAÇÃO


BRASIL SEM GRADES. Mai 14|14:07


por Fernanda Lia de Paula Ramos*




Li com muita satisfação o artigo da Zero Hora do Dr. Afif Simões Neto, juiz de Direito, que relatou com seriedade e preocupação sua experiência na interdição de pessoas com esquizofrenia, ressaltando a grande relação dessa doença com o uso abusivo de maconha. Essa observação condiz com diversas pesquisas realizadas nos últimos anos sobre essa droga. Um trabalho sueco recente avaliou homens por 35 anos e demonstrou que aqueles que tiveram um uso de maconha frequente (mais de 50 vezes durante a vida) tiveram quase quatro vezes mais chance de desenvolver esquizofrenia do que os que não usaram maconha. Vale salientar que o uso de 50 vezes na vida é obtido rapidamente por usuários diários da substância, tão comuns em nossos consultórios. Ou seja, tal estudo nos alerta para o fato de que a maconha, tida por alguns como apenas uma erva natural, pode causar uma das patologias mais graves da psiquiatria, gerando limitações significativas na vida diária, que podem culminar até com interdições, como bem lembrou o Dr. Afif.

Infelizmente, a verdade é que, quanto à maconha, parece que muitos desconhecem (ou fazem questão de desconhecer) os fatos graves (e cientificamente comprovados) que pessoas que lidam diretamente com as consequências dessa droga, como o Dr. Afif e eu, percebem diariamente. Atualmente, por exemplo, fala-se muito da redução do número de acidentes e de mortes no trânsito gerada pelas felizes medidas restritivas e punitivas de tolerância alcoólica zero ao volante, mas o que poucos sabem é que o uso de maconha duplica o risco de acidentes fatais por veículos motorizados. Além disso, pouco se fala sobre o fato de que o uso regular de maconha gera piora significativa do rendimento escolar, provavelmente associada com os déficits de memória, de concentração e da capacidade cognitiva gerados pela droga. Muitos desses estudantes abandonam o colégio e passam a ter dificuldade de ingressar em um mercado de trabalho qualificado e competitivo.

Usuários de maconha também têm maior prevalência de diversas outras patologias psiquiátricas, como transtornos de humor (depressão e transtorno de humor bipolar) e transtornos de ansiedade. Todos esses dados tornam-se ainda mais graves se observarmos, conforme o último levantamento nacional sobre uso de drogas no Brasil, que 62% do 1,3 milhão de brasileiros dependentes de maconha experimentam tal substância antes dos 18 anos. Segundo os estudos da neurociência, nessa idade, o cérebro humano ainda nem sequer completou sua maturação.

E o que será que aconteceria se a maconha fosse liberada hoje no Brasil? Provavelmente ocorreria o que um estudo americano identificou nos seus Estados em que o uso é legalizado. Nesses locais, observou-se um aumento significativo do uso de maconha (o risco de usar foi quase o dobro do que nos Estados em que a droga não é legalizada). Aumentando o consumo, aumentarão também todos os malefícios que a maconha pode gerar. E é isso que queremos para nossos filhos e para a nossa sociedade? Eu, certamente não.

* Fernanda Lia de Paula Ramos é psiquiatra especialista em dependência química e psicoterapia - Artigo publicano na Zero Hora de 15/05/13

domingo, 18 de maio de 2014

MAIS DE MIL PESSOAS MARCHAM PELA MACONHA EM PORTO ALEGRE

ZERO HORA 17/05/2014 | 18h45


Mais de mil pessoas marcham pela legalização da maconha. Evento contou com apelos por medida similar à tomada pelo governo uruguaio, que legalizou a Cannabis no ano passado



Caminhada saiu do Monumento ao Expedicionário, no Parque da RedençãoFoto: Bruno Alencastro / Agencia RBS


— Hoje o tio dos churros vai ganhar uma fortuna — brincava um passante, vestido de verde, no Parque da Redenção.

Brincadeiras à parte, mais de mil pessoas se reuniram a partir das 16h20min deste sábado por uma causa séria: pedir a legalização da maconha no Brasil. O contingente se concentrou no Monumento ao Expedicionário do Parque da Redenção, unindo militantes do Juntos, A. Marighella e do Bloco da Esquerda Canábica, o BEC, além dos organizadores da Copa Growroom. Muitos participantes fumavam seus cigarros de maconha, despreocupados.

Apontada pela organização como a maior marcha da história do evento, a caminhada contou com "marchinhas canábicas" (a saber, letras carnavalescas com a temática da legalização da maconha). As letras alertavam para o poder medicinal da erva ("se você pensa que maconha mata/ maconha não tr mata não / maconha vem da natureza / é remédio pra baixar pressão") e faziam referência à presidente Dilma Rousseff, além da resolução que legalizaria a erva, cuja discussão pelo Senado foi aventada no último mês de março. Alguns manifestantes seguiram à risca o convite à caracterização e apareceram trajados de verde ou até com fantasias relacionadas à Cannabis (foto).


Foto: Bruno Alencastro/Agência RBS

Na concentração, a menção ao nome de Pepe Mujica, presidente uruguaio que ganhou o coração dos militantes da Cannabis com seu modelo de gestão estatal da erva para roubar o mercado do narcotráfico, despertou aplausos e suspiros dos participantes.

A marcha saiu do Monumento ao Expedicionário, passou por dentro do parque até o Araújo Viana, interrompeu por instantes o trânsito da Avenida Osvaldo Aranha e deu a volta nas proximidades da Redenção até o Largo Zumbi dos Palmares, na Cidade Baixa, onde estavam previstas apresentações musicais até as 22h.


quarta-feira, 14 de maio de 2014

DROGAS SÃO O VERDADEIRO MAL DO SÉCULO XXI


JORNAL DO COMERCIO 14/05/2014


EDITORIAL


As drogas estão de tal maneira disseminadas que não há mais segmentos sociais livres dessa autêntica praga do mal do século XXI. Não que tenha começado agora, mas jamais se traficou, consumiu e prendeu tantas pessoas envolvidas com drogas de todos os tipos. Nos laboratórios, ano após ano, são produzidas substâncias cada vez mais alucinógenas e que causam efeitos terríveis. Na mente e no corpo, provavelmente gerando assassinos em série como ocorre nos Estados Unidos, uma sociedade enferma. No Brasil, as mortes violentas por arma de fogo, segundo a polícia, geralmente envolvem disputas por pontos de venda de drogas ou acertos de contas entre traficantes e consumidores com dívidas. É um círculo vicioso terrível, parece, sem fim. Cabe à família monitorar o comportamento dos filhos adolescentes, tendo em vista a amplitude que está tomando o consumo de drogas na sociedade, dos mais pobres aos abastados. E o álcool é uma droga.

Com o alto valor das drogas e o que se paga para quem as transporta de um país a outro, inclusive cruzando oceanos, torna-se fácil recrutar gente para se arriscar. Com muitos desocupados, a falta de estrutura familiar e de estudo, a tentação é muito grande para centenas ou mesmo milhares de pessoas. Além disso, a interpretação legal no Brasil é um primor de impunidade. Por exemplo, uma marroquina foi presa no Aeroporto Internacional de Guarulhos com 4,7 quilos de cocaína na mala, mas acabou sendo absolvida após alegar que a bagagem com a droga não era dela. Simples, não?

Da geração em que a grande infração contra os mais velhos e os padrões sociais impostos era fumar cigarros e tomar uma “cuba libre”, pulamos para drogas como a maconha e, rapidamente, para a cocaína, além daquelas químicas, das quais a mais popular foi o LSD. Hoje, há o terrível crack. Fácil de ser obtido e muito barato para ser vendido. As crises financeiras escancaram as portas para a marginalidade em mentes e corpos não muito sadios. Não se justifica com a pobreza alguém enveredar pela marginalidade, mas que, em parte, explica, é uma verdade.

Além disso, o abuso no consumo de álcool no Brasil supera a média mundial e apresenta taxas superiores a dezenas de países. Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS), que alerta que 3,3 milhões de mortes no mundo em 2012 foram causadas pelo uso excessivo do álcool, 5,9% de todas as mortes. Segundo a entidade, não apenas a bebida pode gerar dependência, mas também poderia levar ao desenvolvimento de outras 200 doenças. Entre os 194 países avaliados, a OMS chegou à conclusão de que o consumo médio mundial para pessoas acima de 15 anos é de 6,2 litros por ano. No caso do Brasil, os dados apontam que o consumo médio é de 8,7 litros por pessoa por ano. Esse volume caiu entre 2003 e 2010. Há dez anos, a taxa era de 9,8 litros por pessoa.

O pior é que as meninas, que antes refugavam beber mesmo em festas, agora, nas chamadas baladas, fumam e bebem. No caso brasileiro, a diferença entre o consumo masculino e feminino ainda é profundo. Entre os homens, a taxa chega a mais de 13 litros por ano. Para as mulheres, ela é de apenas 4 litros, sendo 60% do consumo de cerveja e apenas 4% do consumo pelo vinho. A droga é o verdadeiro mal do século XXI.

domingo, 11 de maio de 2014

O DESABAFO DE UMA SOBREVIVENTE


ZH 11 de maio de 2014 | N° 17793


LARISSA ROSO



ADOLESCENTES E BEBIDA





Camila* embriagou-se com vodca e uísque em quase todos os finais de semana entre os 13 e os 22 anos, em festas ou na casa de amigos. Arriscava-se na carona de motoristas também bêbados, despertava na companhia de desconhecidos. Sofria ao ter de encarar os pais e mentir para eles. Não se recorda do que fez em incontáveis madrugadas. Perdeu oito celulares e seis bolsas.

– Cheguei ao fundo do poço. Meus pais foram coniventes, mas não tinham a mínima noção do que eu aprontava e sofria – conta.

Sóbria há dois anos e meio, a advogada de 24 anos, formada em instituições privadas da Capital, procurou ZH depois de ler a reportagem “Meu filho (não) bebe”, publicada no domingo passado. Reviveu quase uma década de excessos ao percorrer as cinco páginas com flagrantes de adolescentes que driblam a lei e os pais para consumir álcool. Queria desabafar.

– Passei pelas situações que muitos daqueles jovens estão passando. Quero que possam se identificar com a minha história.

*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.

“Meu primeiro porre foi aos *13 anos. Não lembro de nada. Apaguei e acordei no outro dia, de banho tomado. Comprávamos vodca no supermercado, fazendo cara de gente mais velha, maquiadas. Misturávamos com suco em pó, refrigerante. Bebíamos antes das festas ou na casa de alguém, sem os pais saberem. Tinha gente que entrava em coma alcoólico, convulsionava. Nunca achei que tivesse excesso. Não conseguia notar, nem meus amigos. Eles faziam também.

Quando você começa a beber sozinho, não tem noção do que é beber moderadamente. Comecei a beber em casa, com os meus pais, mas eles nunca imaginaram que eu tomasse cachaça e vodca do gargalo. Sabiam que rolava bebida nas festas, mas achavam que era só uma cervejinha.

Na escola, levávamos garrafas escondidas na mochila e bebíamos no ginásio, nos banheiros e nas salas vazias, só pela diversão. Participei de todas as excursões: Ferrugem, Bariloche, Ilha do Mel, Porto Seguro. Bebíamos o dia inteiro. Era muita loucura. Saía direto, todo final de semana. Sempre exagerei, nunca soube o limite. Meus pais me levavam e buscavam e não viam. Percebiam o porre das minhas amigas e não o meu. Nunca vi eles dizendo ‘que horror’.

Uma vez meu pai encontrou uma amiga minha que tinha ficado bebaça na véspera, deu uma risada e disse: ‘Mas que trago, hein?’ As coisas não eram encaradas como algo grave. E eu via isso nos pais de todos os meus amigos.

Gostava muito mais da sensação, da brincadeira, da glamurização do que do gosto da bebida. Tomava uísque puro. Usei maconha e ecstasy. Cheguei a experimentar cocaína, mas não achei nada de mais. Meu negócio era álcool.

Briguei com traficantes quando estava com uma amiga que usava drogas. Comecei a discutir, bati num deles. De tão bêbada, caí num mato, torci o pé. No outro dia, todo mundo riu: ‘Conta aí!’ Eu era a mais falada e exaltada, estava quebrando as regras. Quando chegava no colégio, era o centro das atenções.

Piorou no início da faculdade. As festas eram sempre open bar, pagava R$ 10 ou R$ 15 e consumia à vontade. Briguei numa festa. A polícia queria me levar para uma delegacia, mas fiz um drama, inventei que estava passando por problemas e me safei. Matava muita aula porque acordava de porre. Minha vida girava em torno de festas e bebidas. Saía terça, quarta, sexta, sábado. Sempre fui estudiosa, conseguia dar um jeito.

Meus pais me tiraram a chave para ver o estado em que eu entrava em casa, mas continuei chegando bêbada. Antes de eu sair, minha mãe dizia: ‘Filha, por favor, te controla’.

Sempre fui teimosa e me achei muito independente. Ouvia um ‘não’ e dava um jeito de manipular a situação. Nunca fiz nada proibido, mas conseguia tudo que queria. Eles viam que estava errado, mas se proibissem ficaria pior. Chegava de manhã ou até de tarde e mentia muito: ‘O carro do meu amigo estragou e tivemos que esperar o guincho’, ‘acabou a bateria do celular’. Voltava a pé, sozinha, pelo meio da Redenção. Andei a 100 quilômetros por hora na Nilo Peçanha com caras bêbados. Perdi oito celulares e seis bolsas.

Acordava e não lembrava o que tinha acontecido. Contávamos as histórias uns dos outros: ‘Fulano subiu no palco’, ‘Fulana tirou a blusa’, ‘Fulano foi pego transando atrás da cortina’. Uma amiga caiu, esfolou o rosto e quebrou três dentes. Um amigo atropelou um casal e respondeu criminalmente. Outro teve problemas no fígado. Uma conhecida foi estuprada por dois caras na saída de uma festa. Pelo menos três amigas deixaram a camisinha de lado e pegaram doenças sexualmente transmissíveis.

Quando eu lembrava, me arrependia de uma forma absurda. Vivia num misto de emoções, num momento sentia uma extrema alegria, depois pensava: ‘Putz, o que foi que eu fiz?’. Não tinha tanta ressaca, o abalo moral era muito maior, principalmente porque tinha de olhar para os meus pais e dar bom dia. Aquilo me matava. Sabia que estava machucando eles, mas conseguia me enganar: ‘Tá, não é algo tão horrível. É só um porre, todo mundo faz isso’.

Minha casa sempre teve um bar que era o orgulho da família, com vinhos e champanhas. Dividíamos garrafas. Nunca viram problema de eu beber em casa porque ali estava segura. Ia dormir meio tonta. Uma vez cambaleei, bati na parede e caí. Meus pais contavam histórias de bebedeiras minhas em churrascos com amigos: ‘Ela não conseguia abrir a porta e dizia que a chave estava estragada’. Claro que na hora eles achavam ruim, mas depois todo mundo ria.

Tinha 18 anos quando acordei pela primeira vez com um estranho. ‘Onde estou?’, me perguntei. Não sabia nem o nome do cara, não usei preservativo. Tive vergonha, me senti acuada, minha dignidade estava no chão. Achei que a culpa era minha. ‘Por que foi ficar bêbada? Agora aguenta’, pensei. Cheguei em casa às 10h e menti para os meus pais que estava com um guri com quem ficava na época. Não se espantaram tanto. Apesar de ter conseguido enganá-los, precisava desabafar e contei a verdade. De início, ficaram assustados, mas, com meu pedido de ajuda, foram mais acolhedores. ‘Você não pode confiar nesses caras’, falou meu pai. Ele estava me dando conselhos amorosos, não tinha entendido a gravidade da situação. Depois de irem comigo a uma farmácia para comprar minha primeira pílula do dia seguinte, me propuseram aprender a beber. Por um mês e meio, consegui. Passava a noite só com dois copos. Mas daí bebi dois e meio, depois bebi três...

A segunda tentativa de parar foi depois de chutar uma pedra, tirar um pedaço do dedão e não sentir. Minha mãe viu sangue no lençol e ficou apavorada. ‘Camila, você pode beber, mas são dois copos.’ Não é fácil porque ninguém te poupa. Acham você fraca se não bebe, te olham estranho, não aceitam. Mandei um e-mail para amigas pedindo ajuda. Vi que a minha situação era pior que a delas. Já era conhecida como bebum, pé de cana. ‘Gurias, preciso aprender a beber.’ ‘Claro’, a maioria respondeu. Meus pais ficaram mais aliviados. Degringolei de novo.

Aos 21 anos, era estagiária e faltei a um dia de trabalho. Minha mãe me acordou às 16h, aos berros: ‘O que você está fazendo da sua vida?’ Tentei mentir, mas ela sentiu o fedor de álcool e começou a chorar. Foi um choque. Chorei junto e falei que queria parar. Eu não aguentava mais passar por tudo que estava passando. Fizemos uma reunião familiar. Meu pai sugeriu o Alcoólicos Anônimos (AA), mas implorei para não ir. Fui a um psiquiatra, tomei antidepressivos por pouco tempo. Não queria fazer terapia. Precisava ter força de vontade. Minha formatura estava próxima, já tínhamos comprado horrores de bebida. Mas aí decidi parar.

Recusei muitos convites, não foi fácil. Nas festas, todo mundo bebia e eu ali, no suco ou na água. Então me falaram que no AA também tinha pessoas jovens. Fui sozinha, sentei lá no fundo. Acabei inventando uma desculpa e indo embora, mas vi que tinha gente de todos os tipos, não era o que eu pensava antes. As histórias tinham muito a ver comigo. Havia o cara que acordava e precisava tomar vodca, isso eu nunca fiz, mas tinha também a mulher que acordava na casa de estranhos. E outras situações me fizeram pensar: ‘Se eu não parar, isso vai acontecer comigo também’. Aquelas histórias ficaram na minha cabeça. Voltei, apesar da vergonha. Fui poucas vezes, mas me serviu como estímulo. Tinha que conseguir do meu jeito. Fiz minhas próprias regras.

Faz dois anos e meio que não bebo absolutamente nada. Meus pais foram muito presentes. Doaram o bar que tínhamos em casa, pararam de beber na minha frente. Ficamos mais amigos. Minha irmã não bebe nada, tem nojo, por causa do que passei. Meu pai chora quando fala nesse assunto. ‘Que bom que você parou’, diz. Eles não souberam lidar com tudo o que aconteceu. Entendo eles. Não sei se a liberdade que me deram foi o que acabou por causar tudo isso. Tento não criticar ninguém, até porque não deve ser fácil ver a sua ‘menininha’ passando por isso. Tenho certeza de que essa mesma liberdade que pode ter sido a causa de tudo foi também a solução. Senti na pele, e esse é o melhor aprendizado.

Hoje curto mais o dia, larguei um pouco a vida noturna. O esporte me ajudou muito: corro, jogo tênis, ando de bicicleta. Aprendi a lidar com o fato de ter que ir a uma festa, um casamento, uma formatura e não beber. Claro que me dá vontade. É inevitável.

Ao olhar minhas amigas bebendo e rindo, penso que queria me divertir como elas, sinto inveja. Nesses momentos, lembro do meu passado, mexo no meu ‘lixinho’. Tenho que ter aprendido algo com a minha imaturidade.”

quinta-feira, 8 de maio de 2014

MACONHA LEGALIZADA ABRE ROTAS E OPORTUNIDADES PARA O TRÁFICO

ZERO HORA 08/05/2014 | 05h01


Legalização da maconha deixa rastros de nova rota de tráfico. Volume apreendido na fronteira entre Brasil e Argentina, com provável destino ao Uruguai, foi de oito toneladas em abril

por Humberto Trezzi


Vista como uma política alternativa à guerra ao tráfico, a regulação do plantio e da venda da maconha no Uruguai ainda representa apenas uma coisa para os traficantes: oportunidade de negócios. De olho nesse mercado que começa a se formar no Cone Sul, os criminosos parecem ter se adiantado à lei da oferta e da procura. O volume de apreensões de droga destinada ao território uruguaio deu um salto nos últimos anos.

Em 2008, a polícia uruguaia localizou apenas 809 quilos de maconha. Em 2012, o confisco mais do que dobrou: 1,9 tonelada. E, em 2013, o número passou para 2,1 toneladas.

O volume é pequeno se comparado às apreensões na Argentina, que teria se tornado corredor de passagem da marijuana paraguaia a caminho do território uruguaio. Só no mês de abril, a Gendarmería argentina (polícia de fronteira) apreendeu mais de oito toneladas de maconha próximo ao Uruguai e na fronteira com o Brasil.

Ao longo do ano passado, as províncias argentinas contíguas ao Brasil apreenderam 13 toneladas. Tudo em cidades fronteiriças com o Rio Grande do Sul, como Paso de los Libres e Santo Tomé.

A Junta Nacional de Drogas do Uruguai calcula que um em cada três jovens de Montevidéu fuma maconha e cerca de 120 mil uruguaios a consomem pelo menos uma vez ao ano. Ou seja, 3,5% dos uruguaios (3,5 milhões de pessoas) fazem uso da cannabis sativa anualmente.

Para efeitos de comparação, é mais que o dobro do percentual brasileiro: a última grande pesquisa sobre maconha feita no Brasil, a cargo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e divulgada em 2012, mostra que 1,5% da população consumiu maconha naquele ano.

— A maior parte do que é movimentado é direcionada ao Uruguai. Quando o governo daquele país autorizar o plantio, pode apostar que vão cultivar 10 vezes mais. Os traficantes são ligeiros – afirma o delegado André Luís Epifânio, chefe da delegacia da Polícia Federal em Uruguaiana.

Os caminhos do tráfico

(clique na imagem para abrir o infográfico em tamanho maior)


Dentro do território gaúcho também cresceu o movimento de marijuana. Foram 82 quilos confiscados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) de janeiro a março, sendo 50 destinados ao Uruguai, a maior parte disso em Santana do Livramento.

No primeiro trimestre de 2013 foram apenas 18 quilos de erva apreendidos. Outros 106 quilos destinados ao Uruguai foram apreendidos semana passada, em Cruz Alta.

— Os indícios de uma nova rota para o Uruguai são avassaladores. Basta ver as apreensões, que aumentaram — comenta Alessandro Castro, do setor de comunicação da PRF.

Autor de lei aposta em redução da ilegalidade

Especialista em segurança pública, o ex-deputado federal Marcos Rolim considera “precipitado” deduzir que a entrada de maconha no Uruguai aumentou. Ele diz que dados oficiais não necessariamente refletem tendência de aumento de atividades criminosas.

— As apreensões podem ter crescido porque a polícia trabalhou mais ou até porque algum traficante não pagou suborno — pondera o sociólogo, defensor da descriminalização do consumo da maconha.

Já o autor da polêmica Lei da Maconha, que regula o plantio e a comercialização no Uruguai, deputado Julio Bango (Frente Ampla), avalia que o tráfico possa ter aumentado frente à demanda crescente por marijuana entre uruguaios. Mas aposta na diminuição da ilegalidade ao longo do tempo.

— Quando o governo controlar o comércio, os traficantes vão perder espaço — afirma Bango.

Operação policial fecha bunker das drogas

Policiais federais argentinos e de fronteira receberam em outubro um informe que resultou em uma grande operação. Uma quadrilha transnacional teria locado uma estância em Santo Tomé, município argentino que faz fronteira com a cidade gaúcha de São Borja. De lá, enviavam cocaína para o Brasil e maconha ao Uruguai.

Em 14 de novembro, os agentes, munidos de ordem judicial, ocuparam a fazenda Santa María de Aguapey. Os 30 policiais entraram escondidos em um caminhão-frigorífico, de onde saltaram para a ação. O local era um verdadeiro bunker. Tinha pista de aterrisagem com quase mil metros de comprimento, um caminhão-tanque com mil litros de combustível para recarregar aeronaves e quatro aviões estacionados em meio a árvores.

Os aviões Super Skylane e Cessna 200 eram dotados de dispositivos que permitem driblar radares. A base do narcotráfico contava ainda com telefones via satélite, radiocomunicadores, GPS e gerador de energia própria. Na operação, os policiais descobriram 330 quilos de cocaína numa aeronave e prenderam oito pessoas.

Entre os presos, estavam argentinos, paraguaios, peruanos, bolivianos e uma brasileira. Ao serem interrogados, alguns dos presos admitiram que também vendiam maconha para o Uruguai.

— Portavam todo tipo de armas, incluindo fuzis norte-americanos — descreveu o secretário nacional de Segurança Pública argentino, Sergio Berni.

Outros dois aviões foram apreendidos em 17 de abril pela Gendarmería argentina em Paso de los Libres. Estavam numa fazenda, que tinha pista própria, ao lado do aeroporto daquela cidade. Ao todo, seis aeronaves foram confiscadas em cinco meses pelos policiais que atuam na fronteira Argentina-Brasil.