LARISSA ROSO
ADOLESCENTES E BEBIDA
Camila* embriagou-se com vodca e uísque em quase todos os finais de semana entre os 13 e os 22 anos, em festas ou na casa de amigos. Arriscava-se na carona de motoristas também bêbados, despertava na companhia de desconhecidos. Sofria ao ter de encarar os pais e mentir para eles. Não se recorda do que fez em incontáveis madrugadas. Perdeu oito celulares e seis bolsas.
– Cheguei ao fundo do poço. Meus pais foram coniventes, mas não tinham a mínima noção do que eu aprontava e sofria – conta.
Sóbria há dois anos e meio, a advogada de 24 anos, formada em instituições privadas da Capital, procurou ZH depois de ler a reportagem “Meu filho (não) bebe”, publicada no domingo passado. Reviveu quase uma década de excessos ao percorrer as cinco páginas com flagrantes de adolescentes que driblam a lei e os pais para consumir álcool. Queria desabafar.
– Passei pelas situações que muitos daqueles jovens estão passando. Quero que possam se identificar com a minha história.
*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.
“Meu primeiro porre foi aos *13 anos. Não lembro de nada. Apaguei e acordei no outro dia, de banho tomado. Comprávamos vodca no supermercado, fazendo cara de gente mais velha, maquiadas. Misturávamos com suco em pó, refrigerante. Bebíamos antes das festas ou na casa de alguém, sem os pais saberem. Tinha gente que entrava em coma alcoólico, convulsionava. Nunca achei que tivesse excesso. Não conseguia notar, nem meus amigos. Eles faziam também.
Quando você começa a beber sozinho, não tem noção do que é beber moderadamente. Comecei a beber em casa, com os meus pais, mas eles nunca imaginaram que eu tomasse cachaça e vodca do gargalo. Sabiam que rolava bebida nas festas, mas achavam que era só uma cervejinha.
Na escola, levávamos garrafas escondidas na mochila e bebíamos no ginásio, nos banheiros e nas salas vazias, só pela diversão. Participei de todas as excursões: Ferrugem, Bariloche, Ilha do Mel, Porto Seguro. Bebíamos o dia inteiro. Era muita loucura. Saía direto, todo final de semana. Sempre exagerei, nunca soube o limite. Meus pais me levavam e buscavam e não viam. Percebiam o porre das minhas amigas e não o meu. Nunca vi eles dizendo ‘que horror’.
Uma vez meu pai encontrou uma amiga minha que tinha ficado bebaça na véspera, deu uma risada e disse: ‘Mas que trago, hein?’ As coisas não eram encaradas como algo grave. E eu via isso nos pais de todos os meus amigos.
Gostava muito mais da sensação, da brincadeira, da glamurização do que do gosto da bebida. Tomava uísque puro. Usei maconha e ecstasy. Cheguei a experimentar cocaína, mas não achei nada de mais. Meu negócio era álcool.
Briguei com traficantes quando estava com uma amiga que usava drogas. Comecei a discutir, bati num deles. De tão bêbada, caí num mato, torci o pé. No outro dia, todo mundo riu: ‘Conta aí!’ Eu era a mais falada e exaltada, estava quebrando as regras. Quando chegava no colégio, era o centro das atenções.
Piorou no início da faculdade. As festas eram sempre open bar, pagava R$ 10 ou R$ 15 e consumia à vontade. Briguei numa festa. A polícia queria me levar para uma delegacia, mas fiz um drama, inventei que estava passando por problemas e me safei. Matava muita aula porque acordava de porre. Minha vida girava em torno de festas e bebidas. Saía terça, quarta, sexta, sábado. Sempre fui estudiosa, conseguia dar um jeito.
Meus pais me tiraram a chave para ver o estado em que eu entrava em casa, mas continuei chegando bêbada. Antes de eu sair, minha mãe dizia: ‘Filha, por favor, te controla’.
Sempre fui teimosa e me achei muito independente. Ouvia um ‘não’ e dava um jeito de manipular a situação. Nunca fiz nada proibido, mas conseguia tudo que queria. Eles viam que estava errado, mas se proibissem ficaria pior. Chegava de manhã ou até de tarde e mentia muito: ‘O carro do meu amigo estragou e tivemos que esperar o guincho’, ‘acabou a bateria do celular’. Voltava a pé, sozinha, pelo meio da Redenção. Andei a 100 quilômetros por hora na Nilo Peçanha com caras bêbados. Perdi oito celulares e seis bolsas.
Acordava e não lembrava o que tinha acontecido. Contávamos as histórias uns dos outros: ‘Fulano subiu no palco’, ‘Fulana tirou a blusa’, ‘Fulano foi pego transando atrás da cortina’. Uma amiga caiu, esfolou o rosto e quebrou três dentes. Um amigo atropelou um casal e respondeu criminalmente. Outro teve problemas no fígado. Uma conhecida foi estuprada por dois caras na saída de uma festa. Pelo menos três amigas deixaram a camisinha de lado e pegaram doenças sexualmente transmissíveis.
Quando eu lembrava, me arrependia de uma forma absurda. Vivia num misto de emoções, num momento sentia uma extrema alegria, depois pensava: ‘Putz, o que foi que eu fiz?’. Não tinha tanta ressaca, o abalo moral era muito maior, principalmente porque tinha de olhar para os meus pais e dar bom dia. Aquilo me matava. Sabia que estava machucando eles, mas conseguia me enganar: ‘Tá, não é algo tão horrível. É só um porre, todo mundo faz isso’.
Minha casa sempre teve um bar que era o orgulho da família, com vinhos e champanhas. Dividíamos garrafas. Nunca viram problema de eu beber em casa porque ali estava segura. Ia dormir meio tonta. Uma vez cambaleei, bati na parede e caí. Meus pais contavam histórias de bebedeiras minhas em churrascos com amigos: ‘Ela não conseguia abrir a porta e dizia que a chave estava estragada’. Claro que na hora eles achavam ruim, mas depois todo mundo ria.
Tinha 18 anos quando acordei pela primeira vez com um estranho. ‘Onde estou?’, me perguntei. Não sabia nem o nome do cara, não usei preservativo. Tive vergonha, me senti acuada, minha dignidade estava no chão. Achei que a culpa era minha. ‘Por que foi ficar bêbada? Agora aguenta’, pensei. Cheguei em casa às 10h e menti para os meus pais que estava com um guri com quem ficava na época. Não se espantaram tanto. Apesar de ter conseguido enganá-los, precisava desabafar e contei a verdade. De início, ficaram assustados, mas, com meu pedido de ajuda, foram mais acolhedores. ‘Você não pode confiar nesses caras’, falou meu pai. Ele estava me dando conselhos amorosos, não tinha entendido a gravidade da situação. Depois de irem comigo a uma farmácia para comprar minha primeira pílula do dia seguinte, me propuseram aprender a beber. Por um mês e meio, consegui. Passava a noite só com dois copos. Mas daí bebi dois e meio, depois bebi três...
A segunda tentativa de parar foi depois de chutar uma pedra, tirar um pedaço do dedão e não sentir. Minha mãe viu sangue no lençol e ficou apavorada. ‘Camila, você pode beber, mas são dois copos.’ Não é fácil porque ninguém te poupa. Acham você fraca se não bebe, te olham estranho, não aceitam. Mandei um e-mail para amigas pedindo ajuda. Vi que a minha situação era pior que a delas. Já era conhecida como bebum, pé de cana. ‘Gurias, preciso aprender a beber.’ ‘Claro’, a maioria respondeu. Meus pais ficaram mais aliviados. Degringolei de novo.
Aos 21 anos, era estagiária e faltei a um dia de trabalho. Minha mãe me acordou às 16h, aos berros: ‘O que você está fazendo da sua vida?’ Tentei mentir, mas ela sentiu o fedor de álcool e começou a chorar. Foi um choque. Chorei junto e falei que queria parar. Eu não aguentava mais passar por tudo que estava passando. Fizemos uma reunião familiar. Meu pai sugeriu o Alcoólicos Anônimos (AA), mas implorei para não ir. Fui a um psiquiatra, tomei antidepressivos por pouco tempo. Não queria fazer terapia. Precisava ter força de vontade. Minha formatura estava próxima, já tínhamos comprado horrores de bebida. Mas aí decidi parar.
Recusei muitos convites, não foi fácil. Nas festas, todo mundo bebia e eu ali, no suco ou na água. Então me falaram que no AA também tinha pessoas jovens. Fui sozinha, sentei lá no fundo. Acabei inventando uma desculpa e indo embora, mas vi que tinha gente de todos os tipos, não era o que eu pensava antes. As histórias tinham muito a ver comigo. Havia o cara que acordava e precisava tomar vodca, isso eu nunca fiz, mas tinha também a mulher que acordava na casa de estranhos. E outras situações me fizeram pensar: ‘Se eu não parar, isso vai acontecer comigo também’. Aquelas histórias ficaram na minha cabeça. Voltei, apesar da vergonha. Fui poucas vezes, mas me serviu como estímulo. Tinha que conseguir do meu jeito. Fiz minhas próprias regras.
Faz dois anos e meio que não bebo absolutamente nada. Meus pais foram muito presentes. Doaram o bar que tínhamos em casa, pararam de beber na minha frente. Ficamos mais amigos. Minha irmã não bebe nada, tem nojo, por causa do que passei. Meu pai chora quando fala nesse assunto. ‘Que bom que você parou’, diz. Eles não souberam lidar com tudo o que aconteceu. Entendo eles. Não sei se a liberdade que me deram foi o que acabou por causar tudo isso. Tento não criticar ninguém, até porque não deve ser fácil ver a sua ‘menininha’ passando por isso. Tenho certeza de que essa mesma liberdade que pode ter sido a causa de tudo foi também a solução. Senti na pele, e esse é o melhor aprendizado.
Hoje curto mais o dia, larguei um pouco a vida noturna. O esporte me ajudou muito: corro, jogo tênis, ando de bicicleta. Aprendi a lidar com o fato de ter que ir a uma festa, um casamento, uma formatura e não beber. Claro que me dá vontade. É inevitável.
Ao olhar minhas amigas bebendo e rindo, penso que queria me divertir como elas, sinto inveja. Nesses momentos, lembro do meu passado, mexo no meu ‘lixinho’. Tenho que ter aprendido algo com a minha imaturidade.”
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