O Estado de S.Paulo 24 de março de 2014 | 2h 07
Denis Lerrer Rosenfield* Os costumes alteram-se e com eles, certas noções corriqueiras do bem e do mal, do vício e da virtude. Comportamentos que eram considerados "maus" tornam-se socialmente aceitos, enquanto outros que eram admitidos não são mais compartilhados. Processos desse tipo são inerentes ao desenvolvimento das sociedades. Daí não se segue, porém, que o "novo" seja melhor que o "velho" ou que haja necessariamente "progresso" nessas mutações. Devemos ter o maior cuidado em não identificar o último na ordem do tempo com o melhor para o conjunto da sociedade.
O Brasil vive um momento particularmente interessante de sua História, numa espécie de frenesi pelo novo que ganha contornos de uma realização do "bem". A predominância do politicamente correto funciona como um tipo de parâmetro que deveria ser universalmente válido, como se as pessoas não fossem mais capazes de fazer por conta própria o que consideram o melhor para si ou para a sociedade no seu conjunto. Impera a emulação, a repetição do que vem a ser tido por socialmente aceitável.
Dentre essas transformações dos costumes têm ganho especial relevância em certos formadores de opinião diferentes pressões para a legalização da maconha, como se tal medida fosse capaz de reduzir seu mercado ilegal. Mais que isso, começam a surgir argumentos sobre seus supostos benefícios para a saúde, segundo hipotéticos estudos científicos. Aliás, torna-se uma prática corrente nos meios jornalísticos considerar uma mera hipótese de trabalho como verdade definitiva. Ato seguinte, os defensores políticos dessas ideias passam a propagar tal "verdade" como se "científica" fosse. Trata-se, de fato, de uma empulhação.
Exemplos começam a se multiplicar. O Uruguai passou a ser considerado um país "progressista" por ter legalizado o consumo da maconha, abrindo as portas para que seu comércio se torne legal. Nesse sentido, esse país representaria o "progresso", enquanto seus adversários seriam a concretização do "atraso". O respaldo é ainda reforçado por modificações legislativas em alguns Estados americanos, como se estivéssemos diante de algo inexorável.
Inexorável talvez seja a tendência hoje vigente de considerar qualquer mudança nos costumes como a encarnação do bem. A questão que se coloca é se uma maior tolerância ao consumo de drogas como a maconha deva traduzir-se por sua liberação. Uma coisa consiste em a sociedade aceitar certos comportamentos como nocivos, sem se preocupar demasiado em coibi-los, uma vez que toda sociedade deveria ser capaz de conviver com a diferença e mesmo com comportamentos desviantes em relação aos padrões usualmente aceitos. Uma repressão muito forte pode dar ensejo a formas violentas de reação. Já a tolerância indiscriminada pode levar à contaminação de toda a sociedade.
Os extremos devem ser evitados. Já dizia Aristóteles que a virtude está no termo médio.
Acontece que esse tipo de acolhimento do "novo" e da "diferença" é fortemente contrastado com a condenação de outros comportamentos, como os do consumo de tabaco e de bebidas alcoólicas. É deveras curioso. Os que defendem o consumo da maconha agora começam a apregoar que ela é menos nociva que o do tabaco e do álcool. Logo, ela deveria ser bem mais favorecida!
Observem o paradoxo. A maconha deveria ter seu consumo legalizado - aí, portanto, incluindo sua produção e seu comércio. Deveriam os produtores e comerciantes pagar impostos, o que, na visão de seus defensores, iria reduzir, se não eliminar, o tráfico de drogas - ao menos dessa droga. A tolerância seria implementada, ainda conforme os mesmos defensores, com o reconhecimento da "diferença".
Contudo a mesma ideia de tolerância não é aplicada ao tabaco e ao álcool, cada vez mais tidos por um problema comportamental e de saúde pública que deveria ser equacionado. E equacionado por meio de campanhas que só se têm intensificado, aumentando, inclusive, sua tributação.
Caso particularmente paradigmático é o do tabaco. O consumo e a produção - esta envolve 160 milhões de agricultores familiares - estão sendo desestimulados mediante políticas frequentemente coercitivas. É como se o comportamento saudável devesse ser imposto pelo Estado, restando aos indivíduos apenas a obediência e a tutela, como se fossem incapazes de decidir por si mesmos. Qual é o problema de uma pessoa que gosta de fumar e beber? Não é a livre escolha uma opção sua? Será que as pessoas necessitam de controladores de consciência?
O contraste é ainda mais acentuado quando se procura legalizar a maconha, fazendo do seu consumo um negócio como outro qualquer, passando o tráfico a mudar de natureza, tornando essa droga um produto comercializável, enquanto se faz o processo inverso no que diz respeito ao tabaco.
O tabaco passa a ser fortemente tributado, criando um mercado negro, o do contrabando, que já representa 30% do mercado total. Empregos estão sendo perdidos. O que antes era tido por tráfico passa a ser considerado como "legal", enquanto o que era e é legal passa a ser objeto de "contrabando", comércio ilegal que só favorece, na verdade, o Paraguai. O consumo de álcool, a continuar essa tendência, seguirá pelo mesmo caminho.
Tudo isso se deve a uma espécie de cruzada do politicamente correto. Este toma o que considera "bom" ou "progressista" como algo que deve ser simplesmente imposto aos que não querem seguir a nova forma de "virtude".
Bernard de Mandeville, célebre libertário do século 17, naquele então denominado libertino, já advertia contra os reformadores sociais, os reformadores dos costumes, que, em nome da virtude, terminavam produzindo formas de desestruturação econômica e social. A imposição do bem pode produzir daninhas consequências. É a marcha da intolerância.
*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS.