ZERO HORA 01 de novembro de 2012 | N° 17240
DO CONSULTÓRIO À CADEIA
Indiciado pela polícia por cárcere e agressões à namorada, homem arruinou clínica da família por causa do vício em drogas
JOSÉ LUÍS COSTA
O inquérito policial encaminhado ontem à Justiça com o indiciamento do médico Cesar Duilio Gomes Bernardi, 53 anos, por porte ilegal de arma, cárcere privado e agressão a uma namorada, expõe mais um drama familiar impulsionado pelo crack. A prisão do médico – desde o dia 25 ele está recolhido preventivamente no Presídio Central – é o ápice de uma trajetória tortuosa que teve início na adolescência, quando Cesar conheceu a maconha pelas mãos de amigos do bairro Glória, em Porto Alegre.
Eram tempos de estudante nos embalos dos anos 1970, e Cezinha, como era conhecido, trocava beijos nos corredores do Colégio Cruzeiro do Sul com uma colega, uma uruguaia dois anos mais jovem. Desaprovado pelos pais da garota, o namoro não foi longe, mas ele seguiu cada vez mais próximo das drogas. Experimentaria coisa pior: cocaína.
Mais velho dos três filhos de um médico e professor universitário, Cesar cursou medicina na PUCRS, onde se formou em 1988. Era um aluno inteligente, mas não conseguia superar o vício. Por causa da droga, se envolveu em um roubo e acabou preso (leia texto abaixo).
Tempos depois, o clínico-geral foi trabalhar no consultório do pai, na Rua Florêncio Ygartua, no coração do elegante bairro Moinhos de Vento, na Capital. Tinha tudo para dar certo. As quatro salas da clínica viviam apinhadas de pacientes da manhã à noite. O pai caminhava para a aposentadoria e, aos poucos, foi deixando a clínica sob o controle do primogênito. Mas Cesar teria dificuldades de cumprir horários e compromissos. Marcava consultas e não aparecia. A clientela foi minguando, e o médico acabou depenando o consultório para comprar droga.
– Ele vendeu carro em nome da clínica e equipamentos. Fez dívidas que não tinha como pagar – conta um parente.
A família se desfez do consultório em meados de 2005. Teria vendido por valores considerados abaixo dos de mercado. Tinha débitos acumulados, o condomínio estava atrasado e o interior das salas, destruído. O médico passou a atender a domicílio pacientes que o procuravam, esporadicamente, a partir de anúncio na internet. Não vivia mais com a mulher e os dois filhos e foi morar em uma peça com banheiro nos fundos da casa dos pais.
Família dava dinheiro para evitar dívida com traficantes
De personalidade forte, convencia os familiares a lhe dar dinheiro para subir o morro do bairro Glória atrás de drogas. Ali foi apresentado ao crack.
– A gente dava (dinheiro) para evitar de ele ficar devendo. Uma vez, um traficante ameaçou a família de morte – afirmou um parente à polícia.
Cesar teria atraído outras mulheres para seu quarto. Ficariam lá trancados por dias, e ninguém da família podia se meter. Quando era perguntado sobre as visitas, respondia que elas estavam em tratamento de sono. Parentes suspeitam de que elas eram agredidas e fugiam, como aconteceu com a namorada dele, em 19 de outubro. Drogado, o médico se tornava agressivo e não aceitava ser contrariado.
– Ele sempre foi muito independente e nunca conseguimos interná-lo. Sentimos muito o que aconteceu por ele, pela mulher – lamentou um familiar.
Clínico até já assaltou para comprar cocaína
Preso em 1987, quatro dias depois de completar 29 anos, o médico foi recolhido ao Presídio Central de Porto Alegre sob acusação de ter participado de um assalto. O roubo ocorreu em 1983 e teria um objetivo: conseguir dinheiro para comprar cocaína. Julgado pelo crime pela 11ª Vara Criminal da Capital, o médico foi condenado a cinco anos e oito meses de prisão em regime semiaberto. Cumpriu parte da pena no Patronato Lima Drummond, em Porto Alegre, e outra no Presídio de Cruz Alta, para onde foi transferido para prestar serviços, com autorização judicial, no Hospital Militar da cidade.
Espancada, enfermeira foi forçada a se drogar
Em janeiro, o médico Cesar Duilio Gomes Bernardi, 53 anos, reencontrou, quatro décadas depois, a antiga namorada de colégio, uma enfermeira uruguaia de 51 anos (o nome não foi revelado pela polícia). Com a vida estabilizada, separada, mãe de dois filhos, ela também estava morando sozinha. E cheia de energia para reviver o romance juvenil com a disposição de ajudar Cesar a domar o vício e a retomar a carreira médica.
Em maio, o relacionamento engatou de vez, e a enfermeira passou a pernoitar no quarto do médico. E começaram as brigas. No final de setembro, Cesar teria dado uma tapa no rosto da mulher, a deixando com um olho roxo. A enfermeira percebeu que o namoro não ia dar certo, se afastou, mas aceitou voltar, deixando-se levar pelos galanteios do médico.
– Quando não estava drogado, era muito gentil. Ligava, elevava a autoestima dela e a fazia se sentir bem – relata a delegada Nadine Farias Anflor, da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher.
A enfermeira acreditava que o destempero de Cesar não iria além daquele tapa. No começo de outubro, de férias do trabalho em um hospital da Capital, ela pegou uma muda de roupa para passar um dia na casa do médico, mas acabou ficando mais tempo. Na primeira semana tudo estava bem. Ela ia ao banco, à padaria e votou em 7 de outubro.
Mas a partir do dia seguinte, as brigas recomeçaram, e o médico teria proibido a mulher de sair do quarto, intimidando-a, com um revólver que guardava no armário – a arma foi apreendida pela polícia. Cesar teria gastado R$ 2 mil, sacados da conta da namorada, comprando comida, refrigerantes, cocaína e crack.
Segundo relato da vítima à polícia, ela não passava fome, mas apanhou sucessivamente por 10 dias. Conforme a enfermeira, o médico, enfurecido, desferia tapas nos ouvidos dela (golpe conhecido como telefone), socos no rosto e na nuca e furava a palmas da mãos com a ponta de um cortador de unhas. Em uma das brigas, ela teve os cabelos cortados com tesoura. Um chicote e um relho, usados nas agressões, foram apreendidos.
– Um dia ela apanhou de relho até rasgar a pele e desmaiou. Os golpes eram sempre abaixo do joelho para não poder se levantar. Depois, dava doce de leite para ela não ficar anêmica – conta a delegada.
A enfermeira já não tomava mais banho, não trocava de roupa e não tinha forças para se erguer da cama. Três dias antes de fugir, aproveitando que o médico dormia, diz que foi obrigada a experimentar crack para não apanhar ainda mais.
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