Lei de Drogas
Supremo impõe limites ao poder do legislador
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 14 de maio de 2012
Duas
decisões tomadas em um espaço de um ano e meio sobre a mesma lei
revelaram que o Supremo Tribunal Federal não está disposto a permitir
que o Congresso Nacional atropele a Constituição com a justificativa de
combater a criminalidade. A mensagem é clara: o rigor da lei tem de
obedecer aos parâmetros mínimos das garantias constitucionais, ou as
normas cairão por terra.
Na última quinta-feira (10/5), os
ministros derrubaram, por maioria, a regra da chamada Nova Lei de Drogas
(Lei 11.343/2006) que impedia juízes de conceder liberdade provisória a
presos em flagrante por tráfico de drogas. Em setembro de 2010, outra
regra contida no mesmo artigo 44 da lei, que impedia a conversão de pena
de prisão em restritiva de direitos, havia sido julgada
inconstitucional.
No julgamento da última quinta, o ministro
Celso de Mello, decano do Supremo, chegou a dizer que a proibição de que
o juiz analise a possibilidade de o acusado por tráfico responder ao
processo em liberdade “transgride o princípio da separação de Poderes”.
Trocando em miúdos, o Parlamento não pode, por meio de lei, impedir que
magistrados exerçam prerrogativas inerentes à sua função, como é o caso
de avaliar se um acusado pode responder ao processo em liberdade e
determinar qual é a punição mais adequada para o crime cometido por um
condenado.
No caso mais recente, por sete votos a três, os
ministros julgaram inconstitucional a expressão “e liberdade provisória”
contida no artigo 44 da Lei 11.343/2006, que instituiu o Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). De acordo com a
regra, os crimes relacionados ao tráfico de drogas “são inafiançáveis e
insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória,
vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”.
Apesar
de a expressão se referir especificamente ao crime de tráfico de
drogas, as discussões em plenário mostraram que os ministros não admitem
a possibilidade de a lei vedar a concessão de liberdade sem que o juiz
possa examinar o caso concreto em quaisquer crimes.
A decisão foi
tomada em pedido de Habeas Corpus impetrado pelos advogados Daniel Leon
Bialski e Guilherme Pereira Gonzalez Ruiz Martins. No pedido, os
advogados sustentavam que a alteração trazida pela Lei 11.464/2007,
posterior à Lei de Drogas, que permitiu a liberdade provisória para
crimes hediondos ou equiparados, certamente abrangeria o crime de
tráfico, revogando tacitamente a vedação expressa da lei anterior.
Os
advogados juntaram ao pedido a exposição de motivos da Lei 11.464: “O
Projeto pretende modificar o artigo 2º da Lei 8.072, de 1990, com
objetivo de adequá-la à evolução jurisprudencial ocorrida desde sua
entrada em vigor, bem como torná-la coerente com o sistema adotado pela
Parte Especial do Código Penal e com os princípios gerais do Direito
Penal. A proposta de alteração do inciso II do artigo 2º busca estender o
direito à liberdade provisória aos condenados por esses delitos, em
consonância com o entendimento que já vêm se tornando corrente nas
instâncias superiores do Poder Judiciário”.
Por essas razões, os
advogados alegaram que a lei deixa claro que não se poderia obstruir ou
negar a liberdade provisória para os delitos hediondos e a esses
equiparados. Outro ponto fundamental para a defesa foi a alegação de que
o inciso LXVI do artigo 5º da Constituição vedava unicamente aos crimes
de tráfico de drogas a possibilidade de concessão da liberdade
provisória mediante a atribuição de fiança, o que importaria na
conclusão de que o agente não poderia substituir a sua liberdade por um
bem de valor econômico para responder solto ao processo.
Mas não
seria vedada a concessão de liberdade provisória se estivessem ausentes
os motivos da prisão preventiva. Com base em precedentes do próprio STF,
os advogados lembraram que a prisão preventiva decorrente unicamente de
previsão legal não é autorizada pelo ordenamento jurídico brasileiro em
razão da primazia dos princípios da presunção de inocência,
razoabilidade, devido processo legal, além da obrigatoriedade de
fundamentação dos mandados de prisão.
Liberdade provisória
Na
última quinta, o Supremo decidiu que o legislador não pode restringir o
poder do juiz de analisar a possibilidade de conceder liberdade
provisória. Os ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Luiz Fux
ficaram vencidos. Joaquim Barbosa concedia o pedido de Habeas Corpus
para determinar a soltura do preso por considerar que a decisão de
mantê-lo preso carecia de fundamentação.
Para o ministro Marco
Aurélio, "os representantes do povo brasileiro e os representantes dos
estados, deputados federais e senadores, percebendo a realidade prática e
o mal maior que é revelado pelo tráfico de entorpecentes, editaram
regras mais rigorosas no combate ao tráfico de drogas". De acordo com
ele, o legislador agiu dentro dos limites de sua competência. Mas o
ministro também concedia o Habeas Corpus 140.339 por excesso de prazo da
prisão cautelar, já que o acusado está preso há quase três anos sem
condenação definitiva.
Para a maioria do tribunal, contudo, a
norma é inconstitucional. Como ressaltou o decano do STF, ministro Celso
de Mello, a gravidade abstrata do delito não basta, por si só, para
justificar a prisão cautelar do suposto criminoso. Principalmente, sem
que a culpa tenha sido formada.
O relator do processo, ministro
Gilmar Mendes, disse que a inconstitucionalidade da norma reside no fato
de que ela estabelece um tipo de regime de prisão preventiva
obrigatória. E a liberdade seria a exceção. Na verdade, as garantias
constitucionais preveem o contrário. Para o ministro Celso de Mello, o
juiz tem o dever de aferir se estão presentes hipóteses que autorizam a
liberdade. Lewandowski concordou com Celso e afirmou que o princípio da
presunção de inocência e a obrigatoriedade de fundamentação das ordens
de prisão pela autoridade competente impedem que a lei proíba, de saída,
a análise de liberdade provisória.
No julgamento, os ministros
deixaram claro que não se trata de impedir a decretação da prisão
provisória quando necessário, mas de não barrar a possibilidade de o
juiz, que é quem está atento aos fatos específicos do processo, analisar
se ela é ou não necessária.
Pena alternativa
Em setembro de
2010, os ministros declararam inconstitucional a regra, contida no mesmo
artigo 44, que proibia juízes de fixar penas alternativas para
condenados por tráfico de drogas. Na ocasião, o ministro Celso de Mello
disse que cabe ao juiz da causa avaliar qual é a pena mais adequada para
o condenado. “Afasta-se o óbice para que o magistrado possa decidir”,
afirmou.
A maioria dos ministros entendeu que a proibição fere o
princípio da individualização da pena. Para os quatro vencidos, a
Constituição permite que o legislador estabeleça balizas dentro das
quais o juiz deve atuar na hora de decidir qual será a pena de
condenados.
O relator do processo, ministro Ayres Britto,
sustentou que o legislador não pode restringir o poder de o juiz
estabelecer a pena que acha mais adequada para os casos que julga.
“Ninguém mais do que o juiz da causa pode saber a melhor pena para
castigar e ressocializar o apenado”, afirmou na semana passada. De
acordo com ele, a lei não pode proibir que a Justiça procure
“alternativas aos efeitos traumáticos do cárcere”.
Os ministros
Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Celso
de Mello concordaram com o relator. O ministro Gilmar Mendes apontou o
que chama de “falta de cuidado do legislador” na fixação de limites e no
respeito à reserva legal. “Não há liberdade para o legislador neste
espaço que é de direito fundamental. A Constituição consagrou que o
direito à individualização da pena é fundamental e como tal deve ser
tratado”.
Gilmar Mendes ressaltou que o STF não está decidindo
que haja uma liberação geral para os condenados por tráfico, mas sim
permitindo que o juiz faça a avaliação e possa decidir com liberdade
qual será a pena mais adequada. “O tribunal está a impedir que se retire
do juiz o poder dessa avaliação”, concluiu, também na semana passada.
O
ministro Joaquim Barbosa divergiu do relator e foi acompanhado pelas
ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie (aposentada) e pelo ministro Marco
Aurélio. Para Barbosa, a Constituição não outorga ao juiz esse poder
amplo, de decidir qual é a pena mais adequada em todos os casos.
Joaquim
Barbosa deu exemplos nos quais o legislador restringiu o poder decisão
do juiz sobre a pena e que não são considerados inconstitucionais. “O
Código Penal traz vedações à substituição de pena privativa de liberdade
por restritiva de direitos em diversos pontos. Por exemplo, quando o
crime é cometido com violência ou grave ameaça”, afirmou. O ministro
lembrou que no crime de roubo simples é vedada a pena alternativa.
O
ministro Marco Aurélio lembrou que a própria Constituição dá um
tratamento diferente ao tráfico de drogas ao estabelecer que é um crime
inafiançável. Para Marco, a Constituição se auto-limita. “Não consigo
harmonizar o fato de uma pessoa ser presa em flagrante, responder ao
processo presa e ter a seguir, depois de condenada, a pena restritiva de
liberdade substituída pela restritiva de direitos”, disse.
O
voto do ministro Celso de Mello no sentido de declarar a regra
inconstitucional já era esperado. Em outras ocasiões, o decano já havia
concedido liminares para permitir que pessoas presas por tráfico de
drogas respondam ao processo em liberdade, o que também é vedado pela
Lei de Drogas.
COMPROMETIMENTO DOS PODERES
As políticas de combate às drogas devem ser focadas em três objetivos específicos: preventivo (educação e comportamento); de tratamento e assistência das dependências (saúde pública) e de contenção (policial e judicial). Para aplicar estas políticas, defendemos campanhas educativas, políticas de prevenção, criação de Centros de Tratamento e Assistência da Dependência Química, e a integração dos aparatos de contenção e judiciais. A instalação de Conselhos Municipais de Entorpecentes estruturados em três comissões independentes (prevenção, tratamento e contenção) pode facilitar as unidades federativas na aplicação de políticas defensivas e de contenção ao consumo de tráfico de drogas.
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