LÉO GERCHMANN | ENVIADO ESPECIAL/MONTEVIDÉU
ENTREVISTA
“O narcotráfico é pior que a droga”
De alpargatas, cabelos desalinhados, barba por fazer, o indefectível bigode de cantor de tango e a simplicidade que o mundo aprendeu a ver como autêntica, o presidente do Uruguai, José Alberto Mujica Cordano, ou simplesmente Pepe Mujica, 78 anos, recebeu ontem Zero Hora em sua chácara de Quincho Varela, distante 20 minutos do centro de Montevidéu. Mujica é amável. Na entrada de madeira da propriedade, a já famosa cachorrinha perneta Manuela aproxima-se dos visitantes, aceita os afagos. Há outros dois cães e um gato à porta da residência, mas só ela acompanha o homem que governa 3,5 milhões de uruguaios.
A chácara é o recanto do ex-guerrilheiro tupamaro, em meio a livros, flâmulas e recordações. Ali, produz seu próprio Tannat e planta acelga, beterraba e flores. A única segurança à vista é um carro da polícia. Um furgão serve de transporte presidencial, em lugar do Fusca azul, ano 1987, que valeria algo como US$ 900, não fosse o ilustre proprietário.
Na entrevista, de 50 minutos, o presidente uruguaio define como um “teste social” a legislação que regula a produção e o consumo de maconha, aprovada pela Câmara dos Deputados e à espera de votação no Senado. Defende um mundo mais justo e sem preconceitos. Põe fé num Mercosul vitaminado, critica a Argentina e diz que o mensalão não ocorreria em seu país. A seguir, trechos da entrevista:
Zero Hora – Que sonhos de guerrilheiro o presidente José Mujica colocou em prática?
José Mujica – Creio que a motivação da preocupação social, de tratar de contribuir para conseguir uma sociedade com melhores relações humanas, mais justa, mais equitativa, onde o “meu” e o “teu” não separe tanto as pessoas. Essa maravilhosa aventura que é a vida, que, por ser tão cotidiana, as pessoas não se dão conta. Só valorizam o que têm. Estar vivo é quase um milagre. Procurar que as pessoas estejam o mais felizes possível. Essa é uma causa nobre. Naquela época (no período da luta armada), pertencíamos a um mundo que tinha seus arsenais de ideias, e entramos em outro mundo. Mas, na realidade, a causa que nos impulsiona é a mesma. Os caminhos, o que podemos tentar, são diferentes, mais complexos. Tudo ficou muito mais difícil, sobretudo é tudo a muito mais longo prazo do que o que poderíamos pensar em nossos tempos de juventude.
ZH – Por quê?
Mujica – Por causa da realidade. As mudanças culturais são enormemente difíceis. Existem classes sociais cuja cultura é muito difícil de mudar, custa muito esforço, muito conhecimento. Necessita-se de recursos difíceis de conseguir. Acredito que o mundo pode ir construindo uma sociedade mais justa, mais nobre. À medida que exista mais massificação do conhecimento e da cultura no nível das grandes massas, um país que tem muita gente e que está escravizado na sociedade de consumo vai ter a construção de uma sociedade melhor. Então, o que parecia ser impossível vai demorar um pouco mais.
ZH – A vida é uma construção?
Mujica – A vida é uma construção permanente, e isso dá sentido à vida. Pode-se viver a vida porque se nasceu, como um vegetal ou qualquer animal. Pode-se dar um conteúdo a esse milagre da vida. Então, nós nos sentimos felizes de participar dessa luta.
ZH – Nos anos 1990, houve na Argentina, com Carlos Menem, e no Brasil, com Collor, governantes que pensavam diferente do senhor. Acredita que, naquela década considerada auge do neoliberalismo, houve um retrocesso?
Mujica – O homem é um animal utopista. Há utopismo de esquerda e há utopismo de direita. Esse utopismo de direita, o neoliberalismo, é o sonho de acreditar que, pela via crônica de mercado, se solucionam todos os problemas. Esse é um utopismo de direita: a parte sagrada é o mercado. Se o mercado funciona livremente, tudo o mais se resolve. Nós acreditamos que isso seja um absurdo. Não é que o mercado não tenha importância, mas, ao lado do mercado, há outras coisas que têm importância. O assunto é mais complicado. O mercado tem certa participação na sociedade, mas também tem suas limitações. Precisa-se de políticas, políticas sociais. Deve-se contribuir para que o Estado trate de compensar aquilo que o mercado não soluciona. O mercado não distribui igualmente, ele concentra. Concentra a riqueza. Mesmo que gere muita riqueza, concentra-a tanto que acaba não distribuindo proporcionalmente a riqueza que se cria. O mercado também cria diferenças sociais enormes. Se o Estado não tem políticas que contribuem com eles, não acredito que o mercado... Esse foi o sonho dos utopistas de direita. Reduzir o Estado ao mínimo, não ter políticas sociais e deixar que o mercado, livremente, ajeite tudo. O utopismo de esquerda é acreditar que o Estado é capaz de fazer tudo e resolver tudo. E termina criando uma burocracia que também segue sendo terrivelmente injusta. Qual é o caminho? Bem, aí está a discussão. É preciso um pouco de mercado, é preciso um pouco de Estado. Mas se precisa, fundamentalmente, que as pessoas sejam dirigentes de si mesmas. Que tenham capacidade de se autogovernar em tudo que seja possível. Para mim, esse é o motor essencial da mudança: que as pessoas não precisem de um Estado que as governe tanto, nem de um mercado cego. Mas que cada um seja responsável em grande parte por seu destino, que possa se juntar com outros e conduzir os fenômenos econômicos, dirigir empresas etc., e não precisem ter de pilotar uns aos outros. Mas isso vai ser um processo...
ZH – Quando o senhor tenta legalizar a produção da maconha, é uma maneira de fazer com que um aspecto perverso do capitalismo, o narcotráfico, seja afastado do processo?
Mujica – Nós não legalizamos a maconha. Regulamos um mercado que já existe. Nós não inventamos esse mercado. Ele já existe. Hoje. Aqui. Tratamos de regular e intervir nesse mercado. Porque o narcotráfico é pior que a droga. O narcotráfico nos traz outros problemas sociais terríveis. Ele degrada o mundo delituoso. Arruma tudo com dinheiro ou morte. Há um lema: plata o plomo (dinheiro ou chumbo). O mundo delituoso também tinha uma escala de valores. O narcotráfico significa uma degradação na degradada consciência delituosa. É, dentro da cultura do delito, agravar o pior do delito. As consequências sociais vão além do narcotráfico. Toda a delinquência fica violenta, desproporcionalmente violenta. Nossa sociedade está coberta de uma violência irracional e estúpida, às vezes, por ser desproporcional. Sou capaz de matar um homem para tirar-lhe um dinheiro mínimo, de um trabalhador comum. No campo do delito, sempre houve uma certa proporção entre o que se podia fazer e o que não valia a pena. Isso se perde com o narcotráfico. Estamos tentando terminar com esse mercado, legalizando o consumo da maconha, mas controlando-o, dando uma ração mensal ao viciado. Se a pessoa quiser passar dessa ração, teremos de tratá-la. Se mantemos essas pessoas no mundo clandestino, não podemos identificá-las e as deixamos para o narcotráfico. Queremos combater o narcotráfico ao roubar-lhe o mercado e deixá-lo sem negócio. Se conseguiremos, não sei. O que pedimos é o direito de experimentar, diante do evidente fracasso, em todos os lugares, que a repressão teve. A repressão não chega, acredite. Queremos fazer política por outro lado. O narcotráfico é um fenômeno capitalista típico. Como tem alto risco, tem alta taxa de lucro. E por que tem alta taxa de lucro? Porque é um monopólio, poucos o praticam porque tem alto risco. Mas é um fenômeno que se alimenta a si mesmo. A repressão asssegura o monopólio para os poucos que estão no negócio. Não há concorrência, ou há muito pouca. Esse é apenas um aspecto de tantos. O que queremos fazer é um teste social.
ZH – Se essa medida uruguaia for um sucesso, pode ser um modelo para outros países?
Mujica – Pode ser que se aprenda alguma coisa, que outros países possam aprender alguma coisa. E se põe em xeque a ideia de que a única maneira de combater o narcotráfico é com a repressão. Acreditamos que temos de combinar. A repressão não é suficiente. Por um lado, é preciso reprimir, mas, por outro, é preciso dar uma alternativa conduzida.
ZH – Nos anos 1970 e 1980, a maconha tinha glamour. O senhor nunca fumou?
Mujica – Não, nunca fumei. Nesse anos, estava preso.
ZH – Mas o senhor conviveu com muitas pessoas...
Mujica – Sim. Não. A verdade é que não. As drogas são tão velhas quanto o mundo, sempre existiram. As Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) na China, que sei eu? A drogas são velhas, o narcotráfico é que é um fenômeno moderno. É muito pior, degrada toda a sociedade. Não defendo o consumo de maconha, nem nenhum vício. Mas uma coisa é o que pensamos, e outra é o que a sociedade faz. Sabemos que o cigarro faz mal, mas quanta gente fuma? Se você toma dois, três, quatro uísques por dia, é suportável, mas se toma uma garrafa por dia, temos de tratá-lo, pois é um alcoólatra. Acredito que, com a droga, é a mesma coisa. Temos de ver a quantidade que, mesmo perigosa, pode ser suportável e quando temos de tratar. Isso não acontece com o álcool. Uma coisa é uma pessoa alcoólatra, outra é uma que bebe de vez em quando. Certo?
ZH – A presidente Dilma Rousseff falou com o senhor alguma vez sobre essa lei?
Mujica – Ela tem muito medo pelas dimensões do Brasil. Não vê outro caminho a não ser reprimir, agora.
ZH – É muito importante para o Uruguai o acordo comercial Mercosul-União Europeia?
Mujica – É importante ter diversidade. O mundo se está organizando em um grande bloco. A comunidade europeia tem 20 e tantos países, com história, idioma, cultura diferentes. Sem dúvida, por mais que se critiquem, estão se juntando. E criaram uma realidade econômica muito importante. Os Estados Unidos têm seu acordo com o Canadá e com o México. Do outro lado do oceano está a China, que é um Estado multinacional milenar. Tem a Índia. Esse é o mundo em que vivemos. Nesta região, o principal comprador que temos é a China. É o principal cliente do Brasil, nosso, do Paraguai e da Argentina. É inteligente não depender de um único país.
ZH – Há uma resistência muito forte da Venezuela, da Bolívia, do Equador e também da Argentina. Isso é um problema?
Mujica – Entendemos essa resistência, mas acreditamos na diversidade. No mundo de hoje, não se pode ser totalmente independente – e uso a palavra (independente) entre aspas. Temos de ser interdependentes para termos a maior margem de independência possível. Se dependemos de um somente, é perigoso. Se conseguimos diversificar, que nossa orientação exterior dependa de três ou quatro, e se possível mais, melhor. Então, sou a favor da política de diversificar.
ZH – Essa resistência da Argentina é o motivo de alguns desentendimentos?
Mujica – Não. Acredito que a Argentina tenha um projeto, e tem todo o direito de tê-lo, no estilo 1960. Acreditam em solucionar os problemas e vão se fechando cada vez mais. Posso entender se essa for a política geral de todo o Mercosul, mas fechar-se para os próprios países do Mercosul me parece que tira o sentido do Mercosul.
ZH – Agora, no Brasil, o ex-deputado José Genoino, que esteve na guerrilha, está na prisão. Como o senhor vê isso?
Mujica – Não gosto da prisão por motivos políticos. Precisamos lutar por uma humanidade que possa superar essa contradição. Mas, sobre esse assunto, não tenho informações para poder opinar.
ZH – No Brasil, há um sistema político no qual, para que o governo tenha a maioria, há muitas negociações, o que gerou o mensalão. No Uruguai, há um modelo diferente?
Mujica – Aqui não existe isso. No Uruguai, os partidos são muito sólidos. As pessoas não mudam de partido. Os partidos tradicionais são tão velhos quanto o país. E a nossa Frente Ampla, que está no governo, já tem 40 e poucos anos. Não existe essa prática. Aqui, não se compra ninguém nessas decisões. Estamos muito longe disso.
ZH – Esses partidos que existem há anos, essa raiz fortalece a ideologia?
Mujica – Acredito que temos de defender os partidos. Porque os partidos tendem a expressar vontades de caráter coletivo, que vão além das fraquezas individuais. Os indivíduos têm importância, mas não tanta quanto os partidos. Sei que o Brasil é muito grande, é um país continental, tem problemas de integração. E, às vezes, um Estado olha o mundo de maneira independente e aparecem coisas que podem ser criticadas. Mas é milagroso que um governo com minoria parlamentar tenha podido fazer as coisas que o governo Lula fez no Brasil. Isso não é fácil. Sei que lá as pessoas mudam de partido facilmente.
ENTREVISTA
José Alberto Mujica Cordano, Presidente do Uruguai
“O narcotráfico é pior que a droga”
De alpargatas, cabelos desalinhados, barba por fazer, o indefectível bigode de cantor de tango e a simplicidade que o mundo aprendeu a ver como autêntica, o presidente do Uruguai, José Alberto Mujica Cordano, ou simplesmente Pepe Mujica, 78 anos, recebeu ontem Zero Hora em sua chácara de Quincho Varela, distante 20 minutos do centro de Montevidéu. Mujica é amável. Na entrada de madeira da propriedade, a já famosa cachorrinha perneta Manuela aproxima-se dos visitantes, aceita os afagos. Há outros dois cães e um gato à porta da residência, mas só ela acompanha o homem que governa 3,5 milhões de uruguaios.
A chácara é o recanto do ex-guerrilheiro tupamaro, em meio a livros, flâmulas e recordações. Ali, produz seu próprio Tannat e planta acelga, beterraba e flores. A única segurança à vista é um carro da polícia. Um furgão serve de transporte presidencial, em lugar do Fusca azul, ano 1987, que valeria algo como US$ 900, não fosse o ilustre proprietário.
Na entrevista, de 50 minutos, o presidente uruguaio define como um “teste social” a legislação que regula a produção e o consumo de maconha, aprovada pela Câmara dos Deputados e à espera de votação no Senado. Defende um mundo mais justo e sem preconceitos. Põe fé num Mercosul vitaminado, critica a Argentina e diz que o mensalão não ocorreria em seu país. A seguir, trechos da entrevista:
Zero Hora – Que sonhos de guerrilheiro o presidente José Mujica colocou em prática?
José Mujica – Creio que a motivação da preocupação social, de tratar de contribuir para conseguir uma sociedade com melhores relações humanas, mais justa, mais equitativa, onde o “meu” e o “teu” não separe tanto as pessoas. Essa maravilhosa aventura que é a vida, que, por ser tão cotidiana, as pessoas não se dão conta. Só valorizam o que têm. Estar vivo é quase um milagre. Procurar que as pessoas estejam o mais felizes possível. Essa é uma causa nobre. Naquela época (no período da luta armada), pertencíamos a um mundo que tinha seus arsenais de ideias, e entramos em outro mundo. Mas, na realidade, a causa que nos impulsiona é a mesma. Os caminhos, o que podemos tentar, são diferentes, mais complexos. Tudo ficou muito mais difícil, sobretudo é tudo a muito mais longo prazo do que o que poderíamos pensar em nossos tempos de juventude.
ZH – Por quê?
Mujica – Por causa da realidade. As mudanças culturais são enormemente difíceis. Existem classes sociais cuja cultura é muito difícil de mudar, custa muito esforço, muito conhecimento. Necessita-se de recursos difíceis de conseguir. Acredito que o mundo pode ir construindo uma sociedade mais justa, mais nobre. À medida que exista mais massificação do conhecimento e da cultura no nível das grandes massas, um país que tem muita gente e que está escravizado na sociedade de consumo vai ter a construção de uma sociedade melhor. Então, o que parecia ser impossível vai demorar um pouco mais.
ZH – A vida é uma construção?
Mujica – A vida é uma construção permanente, e isso dá sentido à vida. Pode-se viver a vida porque se nasceu, como um vegetal ou qualquer animal. Pode-se dar um conteúdo a esse milagre da vida. Então, nós nos sentimos felizes de participar dessa luta.
ZH – Nos anos 1990, houve na Argentina, com Carlos Menem, e no Brasil, com Collor, governantes que pensavam diferente do senhor. Acredita que, naquela década considerada auge do neoliberalismo, houve um retrocesso?
Mujica – O homem é um animal utopista. Há utopismo de esquerda e há utopismo de direita. Esse utopismo de direita, o neoliberalismo, é o sonho de acreditar que, pela via crônica de mercado, se solucionam todos os problemas. Esse é um utopismo de direita: a parte sagrada é o mercado. Se o mercado funciona livremente, tudo o mais se resolve. Nós acreditamos que isso seja um absurdo. Não é que o mercado não tenha importância, mas, ao lado do mercado, há outras coisas que têm importância. O assunto é mais complicado. O mercado tem certa participação na sociedade, mas também tem suas limitações. Precisa-se de políticas, políticas sociais. Deve-se contribuir para que o Estado trate de compensar aquilo que o mercado não soluciona. O mercado não distribui igualmente, ele concentra. Concentra a riqueza. Mesmo que gere muita riqueza, concentra-a tanto que acaba não distribuindo proporcionalmente a riqueza que se cria. O mercado também cria diferenças sociais enormes. Se o Estado não tem políticas que contribuem com eles, não acredito que o mercado... Esse foi o sonho dos utopistas de direita. Reduzir o Estado ao mínimo, não ter políticas sociais e deixar que o mercado, livremente, ajeite tudo. O utopismo de esquerda é acreditar que o Estado é capaz de fazer tudo e resolver tudo. E termina criando uma burocracia que também segue sendo terrivelmente injusta. Qual é o caminho? Bem, aí está a discussão. É preciso um pouco de mercado, é preciso um pouco de Estado. Mas se precisa, fundamentalmente, que as pessoas sejam dirigentes de si mesmas. Que tenham capacidade de se autogovernar em tudo que seja possível. Para mim, esse é o motor essencial da mudança: que as pessoas não precisem de um Estado que as governe tanto, nem de um mercado cego. Mas que cada um seja responsável em grande parte por seu destino, que possa se juntar com outros e conduzir os fenômenos econômicos, dirigir empresas etc., e não precisem ter de pilotar uns aos outros. Mas isso vai ser um processo...
ZH – Quando o senhor tenta legalizar a produção da maconha, é uma maneira de fazer com que um aspecto perverso do capitalismo, o narcotráfico, seja afastado do processo?
Mujica – Nós não legalizamos a maconha. Regulamos um mercado que já existe. Nós não inventamos esse mercado. Ele já existe. Hoje. Aqui. Tratamos de regular e intervir nesse mercado. Porque o narcotráfico é pior que a droga. O narcotráfico nos traz outros problemas sociais terríveis. Ele degrada o mundo delituoso. Arruma tudo com dinheiro ou morte. Há um lema: plata o plomo (dinheiro ou chumbo). O mundo delituoso também tinha uma escala de valores. O narcotráfico significa uma degradação na degradada consciência delituosa. É, dentro da cultura do delito, agravar o pior do delito. As consequências sociais vão além do narcotráfico. Toda a delinquência fica violenta, desproporcionalmente violenta. Nossa sociedade está coberta de uma violência irracional e estúpida, às vezes, por ser desproporcional. Sou capaz de matar um homem para tirar-lhe um dinheiro mínimo, de um trabalhador comum. No campo do delito, sempre houve uma certa proporção entre o que se podia fazer e o que não valia a pena. Isso se perde com o narcotráfico. Estamos tentando terminar com esse mercado, legalizando o consumo da maconha, mas controlando-o, dando uma ração mensal ao viciado. Se a pessoa quiser passar dessa ração, teremos de tratá-la. Se mantemos essas pessoas no mundo clandestino, não podemos identificá-las e as deixamos para o narcotráfico. Queremos combater o narcotráfico ao roubar-lhe o mercado e deixá-lo sem negócio. Se conseguiremos, não sei. O que pedimos é o direito de experimentar, diante do evidente fracasso, em todos os lugares, que a repressão teve. A repressão não chega, acredite. Queremos fazer política por outro lado. O narcotráfico é um fenômeno capitalista típico. Como tem alto risco, tem alta taxa de lucro. E por que tem alta taxa de lucro? Porque é um monopólio, poucos o praticam porque tem alto risco. Mas é um fenômeno que se alimenta a si mesmo. A repressão asssegura o monopólio para os poucos que estão no negócio. Não há concorrência, ou há muito pouca. Esse é apenas um aspecto de tantos. O que queremos fazer é um teste social.
ZH – Se essa medida uruguaia for um sucesso, pode ser um modelo para outros países?
Mujica – Pode ser que se aprenda alguma coisa, que outros países possam aprender alguma coisa. E se põe em xeque a ideia de que a única maneira de combater o narcotráfico é com a repressão. Acreditamos que temos de combinar. A repressão não é suficiente. Por um lado, é preciso reprimir, mas, por outro, é preciso dar uma alternativa conduzida.
ZH – Nos anos 1970 e 1980, a maconha tinha glamour. O senhor nunca fumou?
Mujica – Não, nunca fumei. Nesse anos, estava preso.
ZH – Mas o senhor conviveu com muitas pessoas...
Mujica – Sim. Não. A verdade é que não. As drogas são tão velhas quanto o mundo, sempre existiram. As Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) na China, que sei eu? A drogas são velhas, o narcotráfico é que é um fenômeno moderno. É muito pior, degrada toda a sociedade. Não defendo o consumo de maconha, nem nenhum vício. Mas uma coisa é o que pensamos, e outra é o que a sociedade faz. Sabemos que o cigarro faz mal, mas quanta gente fuma? Se você toma dois, três, quatro uísques por dia, é suportável, mas se toma uma garrafa por dia, temos de tratá-lo, pois é um alcoólatra. Acredito que, com a droga, é a mesma coisa. Temos de ver a quantidade que, mesmo perigosa, pode ser suportável e quando temos de tratar. Isso não acontece com o álcool. Uma coisa é uma pessoa alcoólatra, outra é uma que bebe de vez em quando. Certo?
ZH – A presidente Dilma Rousseff falou com o senhor alguma vez sobre essa lei?
Mujica – Ela tem muito medo pelas dimensões do Brasil. Não vê outro caminho a não ser reprimir, agora.
ZH – É muito importante para o Uruguai o acordo comercial Mercosul-União Europeia?
Mujica – É importante ter diversidade. O mundo se está organizando em um grande bloco. A comunidade europeia tem 20 e tantos países, com história, idioma, cultura diferentes. Sem dúvida, por mais que se critiquem, estão se juntando. E criaram uma realidade econômica muito importante. Os Estados Unidos têm seu acordo com o Canadá e com o México. Do outro lado do oceano está a China, que é um Estado multinacional milenar. Tem a Índia. Esse é o mundo em que vivemos. Nesta região, o principal comprador que temos é a China. É o principal cliente do Brasil, nosso, do Paraguai e da Argentina. É inteligente não depender de um único país.
ZH – Há uma resistência muito forte da Venezuela, da Bolívia, do Equador e também da Argentina. Isso é um problema?
Mujica – Entendemos essa resistência, mas acreditamos na diversidade. No mundo de hoje, não se pode ser totalmente independente – e uso a palavra (independente) entre aspas. Temos de ser interdependentes para termos a maior margem de independência possível. Se dependemos de um somente, é perigoso. Se conseguimos diversificar, que nossa orientação exterior dependa de três ou quatro, e se possível mais, melhor. Então, sou a favor da política de diversificar.
ZH – Essa resistência da Argentina é o motivo de alguns desentendimentos?
Mujica – Não. Acredito que a Argentina tenha um projeto, e tem todo o direito de tê-lo, no estilo 1960. Acreditam em solucionar os problemas e vão se fechando cada vez mais. Posso entender se essa for a política geral de todo o Mercosul, mas fechar-se para os próprios países do Mercosul me parece que tira o sentido do Mercosul.
ZH – Agora, no Brasil, o ex-deputado José Genoino, que esteve na guerrilha, está na prisão. Como o senhor vê isso?
Mujica – Não gosto da prisão por motivos políticos. Precisamos lutar por uma humanidade que possa superar essa contradição. Mas, sobre esse assunto, não tenho informações para poder opinar.
ZH – No Brasil, há um sistema político no qual, para que o governo tenha a maioria, há muitas negociações, o que gerou o mensalão. No Uruguai, há um modelo diferente?
Mujica – Aqui não existe isso. No Uruguai, os partidos são muito sólidos. As pessoas não mudam de partido. Os partidos tradicionais são tão velhos quanto o país. E a nossa Frente Ampla, que está no governo, já tem 40 e poucos anos. Não existe essa prática. Aqui, não se compra ninguém nessas decisões. Estamos muito longe disso.
ZH – Esses partidos que existem há anos, essa raiz fortalece a ideologia?
Mujica – Acredito que temos de defender os partidos. Porque os partidos tendem a expressar vontades de caráter coletivo, que vão além das fraquezas individuais. Os indivíduos têm importância, mas não tanta quanto os partidos. Sei que o Brasil é muito grande, é um país continental, tem problemas de integração. E, às vezes, um Estado olha o mundo de maneira independente e aparecem coisas que podem ser criticadas. Mas é milagroso que um governo com minoria parlamentar tenha podido fazer as coisas que o governo Lula fez no Brasil. Isso não é fácil. Sei que lá as pessoas mudam de partido facilmente.
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