ZERO HORA 19 de janeiro de 2014 | N° 17678
ARTIGOS
Luiz Antônio Araujo*
A coluna Informe Especial de Zero Hora, editada com primor por Tulio Milman, publicou na sexta-feira uma nota sugerida por um leitor a respeito da atitude dos traficantes depois da legalização da maconha. Diz o inspirador do texto que, para compensar a perda de receita, os narcoempreendedores de hoje poderiam escolher entre estudar sociologia, antropologia ou jornalismo, fazer palestras contra as drogas, se dedicar à política ou à vida monástica ou passar a vender drogas mais pesadas e cometer crimes mais violentos.
A leitura da nota me trouxe à mente a figura do francês Georges Clemenceau (1841-1929). Não porque o velho homem público tivesse algo relevante a dizer sobre drogas ou porque tenha se dedicado a três dos ofícios citados (foi jornalista, palestrante e político). Mas porque, nos últimos 20 anos, a política oficial em relação à maconha foi definida e conduzida como uma guerra em todo o hemisfério ocidental. E de guerra Clemenceau entendia. Quando foi preciso organizar um gabinete de emergência para evitar o colapso francês no sangrento front ocidental, em 1917, o escolhido para chefiá-lo foi esse combativo tribuno nascido na Vendeia. Um ano depois, quando a França e seus aliados assinaram o armistício com a Alemanha derrotada, os compatriotas chamaram-no de “Pai da Vitória”. Nesse dia, Clemenceau declarou:
– Ganhamos a guerra. Agora, devemos ganhar a paz, e isso será talvez ainda mais difícil.
Não há nenhum “Pai da Vitória” na guerra contra as drogas porque os que a moveram foram derrotados pelas próprias ilusões. No afã de combater a produção e o consumo de toda modalidade de substância ilegal, a maconha entre elas, os Estados Unidos optaram por banir qualquer forma de cultivo. Como as distintas variantes da Cannabis sativa são culturas tradicionais em regiões empobrecidas, essa política tensionou países e empurrou populações inteiras para a ilegalidade. Nada disso impediu o consumo de crescer no mundo inteiro, tendo como carros-chefes os Estados Unidos e a Europa, seguidos de um notável boom do mercado na América Latina. Obrigado a operar nas sombras e a recorrer à corrupção e à violência, o tráfico experimentou um processo rápido de cartelização. O narconegócio é como o monstro alienígena de Alien, o Oitavo Passageiro: uma criatura altamente resistente, que se reproduz com uma velocidade impressionante e luta com desespero e criatividade pela sobrevivência. Não respeita fronteiras, instituições ou ideologias e se torna um fator de profunda instabilidade política. Não há exemplo melhor do que a região de Michoacán, no México, uma das principais zonas de plantação de maconha e fabricação de drogas sintéticas do México, onde uma verdadeira guerra civil opõe o cartel batizado de Cavaleiros Templários e as milícias de pequenos agricultores que se opõem às gangues.
Prever o que farão os traficantes após a legalização da maconha é tão difícil quanto imaginar, antes do fim da Lei Seca, como se comportariam os negociantes americanos clandestinos de álcool. Muitos buscaram novos modelos de negócio, da infiltração de sindicatos à indústria do entretenimento. Outros investiram em conexões políticas, e alguns simplesmente desapareceram. Biógrafos do presidente John Kennedy levantam suspeitas, embora sem nenhuma evidência material, de que parte da fortuna da família tenha sido reunida com atividades ilegais durante a Lei Seca – os Kennedy eram comerciantes de bebidas antes da proibição, e o patriarca, Joseph, voltou ao ramo em 1933. O crime organizado não evaporou e tornou-se, sob muitos aspectos, mais sofisticado e perigoso. Mas ninguém atribuiu esse fenômeno às facilidades abertas para o consumo de álcool pelo cidadão comum. Talvez seja mais difícil ganhar a paz do que a guerra. Ignorar a realidade, porém, é o melhor caminho para perder as duas.
*Jornalista
ARTIGOS
Luiz Antônio Araujo*
A coluna Informe Especial de Zero Hora, editada com primor por Tulio Milman, publicou na sexta-feira uma nota sugerida por um leitor a respeito da atitude dos traficantes depois da legalização da maconha. Diz o inspirador do texto que, para compensar a perda de receita, os narcoempreendedores de hoje poderiam escolher entre estudar sociologia, antropologia ou jornalismo, fazer palestras contra as drogas, se dedicar à política ou à vida monástica ou passar a vender drogas mais pesadas e cometer crimes mais violentos.
A leitura da nota me trouxe à mente a figura do francês Georges Clemenceau (1841-1929). Não porque o velho homem público tivesse algo relevante a dizer sobre drogas ou porque tenha se dedicado a três dos ofícios citados (foi jornalista, palestrante e político). Mas porque, nos últimos 20 anos, a política oficial em relação à maconha foi definida e conduzida como uma guerra em todo o hemisfério ocidental. E de guerra Clemenceau entendia. Quando foi preciso organizar um gabinete de emergência para evitar o colapso francês no sangrento front ocidental, em 1917, o escolhido para chefiá-lo foi esse combativo tribuno nascido na Vendeia. Um ano depois, quando a França e seus aliados assinaram o armistício com a Alemanha derrotada, os compatriotas chamaram-no de “Pai da Vitória”. Nesse dia, Clemenceau declarou:
– Ganhamos a guerra. Agora, devemos ganhar a paz, e isso será talvez ainda mais difícil.
Não há nenhum “Pai da Vitória” na guerra contra as drogas porque os que a moveram foram derrotados pelas próprias ilusões. No afã de combater a produção e o consumo de toda modalidade de substância ilegal, a maconha entre elas, os Estados Unidos optaram por banir qualquer forma de cultivo. Como as distintas variantes da Cannabis sativa são culturas tradicionais em regiões empobrecidas, essa política tensionou países e empurrou populações inteiras para a ilegalidade. Nada disso impediu o consumo de crescer no mundo inteiro, tendo como carros-chefes os Estados Unidos e a Europa, seguidos de um notável boom do mercado na América Latina. Obrigado a operar nas sombras e a recorrer à corrupção e à violência, o tráfico experimentou um processo rápido de cartelização. O narconegócio é como o monstro alienígena de Alien, o Oitavo Passageiro: uma criatura altamente resistente, que se reproduz com uma velocidade impressionante e luta com desespero e criatividade pela sobrevivência. Não respeita fronteiras, instituições ou ideologias e se torna um fator de profunda instabilidade política. Não há exemplo melhor do que a região de Michoacán, no México, uma das principais zonas de plantação de maconha e fabricação de drogas sintéticas do México, onde uma verdadeira guerra civil opõe o cartel batizado de Cavaleiros Templários e as milícias de pequenos agricultores que se opõem às gangues.
Prever o que farão os traficantes após a legalização da maconha é tão difícil quanto imaginar, antes do fim da Lei Seca, como se comportariam os negociantes americanos clandestinos de álcool. Muitos buscaram novos modelos de negócio, da infiltração de sindicatos à indústria do entretenimento. Outros investiram em conexões políticas, e alguns simplesmente desapareceram. Biógrafos do presidente John Kennedy levantam suspeitas, embora sem nenhuma evidência material, de que parte da fortuna da família tenha sido reunida com atividades ilegais durante a Lei Seca – os Kennedy eram comerciantes de bebidas antes da proibição, e o patriarca, Joseph, voltou ao ramo em 1933. O crime organizado não evaporou e tornou-se, sob muitos aspectos, mais sofisticado e perigoso. Mas ninguém atribuiu esse fenômeno às facilidades abertas para o consumo de álcool pelo cidadão comum. Talvez seja mais difícil ganhar a paz do que a guerra. Ignorar a realidade, porém, é o melhor caminho para perder as duas.
*Jornalista
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