ANDRÉ MAGS
Em abordagem alinhada a estudo recente da Fiocruz, polícia impõe menos rigor no combate aos usuários de crack
A porta de metal do condomínio na Cohab-Cavalhada, na zona sul de Porto Alegre, resistiu por alguns segundos, até finalmente ceder ao alicate dos policiais do Departamento Estadual de Investigação do Narcotráfico (Denarc). Enfim, eles ingressaram no prédio – de acesso complicado mesmo para agentes experientes, principalmente à noite, por causa da arquitetura labiríntica e da presença de grupos de traficantes na região. Passava das 6h de sexta-feira, a área estava calma, e a maioria dos moradores levantava, sonolenta, com o barulho dos chutes na porta de madeira de um apartamento térreo, enquanto uma informante dos traficantes alardeava na esquina, por celular, a chegada da polícia. Com o mandado de busca e apreensão em mãos, os policiais entraram no ambiente escuro. Até que um grito veio do quarto:
– O que é isso?
Era uma garota de 15 anos. Ela estava sozinha em um imóvel onde um suspeito poderia estar escondendo drogas. Ele não foi localizado. O que fazer com a jovem, que poderia estar sendo usada pelos traficantes? A situação tende a deixar os policiais sem ação. Mas, naquela manhã, o delegado Mario Souza sacou um documento e começou a preenchê-lo, à medida que interrogava a jovem. Tratava-se de uma novidade usada pela polícia gaúcha no combate ao crack: o Relatório de Risco Social (RRS).
Em ações como a do Denarc, é comum os agentes toparem com mulheres grávidas, crianças, depen- dentes químicos e deficientes habitando o mesmo ambiente dos traficantes. Normalmente, com a prisão do criminoso, alguém acaba envolvido no tráfico, a mando do dono da boca ou por iniciativa própria, para tentar manter o sustento da família. E, nesses casos, mais cedo ou mais tarde, a polícia precisa voltar ao local para fazer novas prisões.
Ideia é facilitar a aproximação de outros órgãos, que auxiliariam na luta contra o crack
De tanto “enxugar gelo”, o delegado Heliomar Franco, diretor de investigação do Denarc, criou um projeto-piloto que tem visa a informar outras secretarias sobre o que encontra em locais às vezes acessíveis somente à polícia. A ideia é permitir que órgãos voltados ao acolhimento de crianças e adolescentes, à saúde e ao emprego, entre outros, possam se envolver e colaborar na luta contra as drogas – especialmente o crack. Assim, surgiu o RRS.
A nova forma de tratar o assunto mostra-se alinhada a recente pesquisa apresentada pela Fundação Oswaldo Cruz (leia ao lado).
– A gente não gostaria de voltar a alguns locais. Prendemos o traficante e deixamos lá alguém que vai assumir o lugar dele. O policial tem o olhar para identificar essa situação, e preenche o relatório. A direção avalia o risco social e encaminha a alguma secretaria do Estado. Esperamos que elas participem para que essas pessoas não sejam cooptadas pelo tráfico – explica o delegado, que espera testar um pouco mais a novidade antes de envolver outras secretarias no projeto.
Pesquisa propõe menos rigor
Se até o braço repressor do Estado tem buscado alternativas na guerra contra o crack, é possível concluir que a atual política não tem dado resultado. Com outro viés, na semana passada foi divulgada uma pesquisa sobre o perfil de usuários de crack no Brasil, feita pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
O estudo, que tem sido visto como prova de que o problema nasce das mazelas sociais, se tornou o bastião dos críticos das estratégias mais duras, como o tratamento compulsório.
– O principal achado é o perfil de exclusão social dos usuários. Isso é muito forte. A pesquisa esvazia o debate sobre internação compulsória – diz o secretário Nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano.
O estudo, porém, virou alvo da ira dos defensores da repressão. O número de usuários de estimado na pesquisa (370 mil nas capitais e no Distrito Federal) foi considerado baixo.
“Não temos a união de família. É cada um por si”
Há duas semanas e três dias internado, o microempresário de 34 anos, olhos azuis e cabelos loiros arrumados com gel diverge do estereótipo do viciado em crack, normalmente não branco. Mas uma característica o identifica com os demais usuários: a família desestabilizada.
A droga ocupou o vazio deixado pelo pai, internado em uma clínica geriátrica, por dois irmãos alcoólatras, outro irmão foragido e outro internado para tratamento do vício em crack.
– Não temos a união de família. É difícil ter na família um churrasco ou uma ceia de Natal agradável. É cada um por si – lamenta o microempresário.
Ao longo dos quatro primeiros anos de vício, manteve-se trabalhando – fumava até três vezes por semana, mas evitava quando tinha serviço. A postura contradiz a teoria do usuário “zumbi”, dominado pela droga e sem forças para se manter centrado em atividades que exijam maior dedicação.
– O usuário tende a se focar no hoje – diz o chefe da Unidade de Psiquiatria de Adição do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, psiquiatra Felix Kessler.
Em abordagem alinhada a estudo recente da Fiocruz, polícia impõe menos rigor no combate aos usuários de crack
A porta de metal do condomínio na Cohab-Cavalhada, na zona sul de Porto Alegre, resistiu por alguns segundos, até finalmente ceder ao alicate dos policiais do Departamento Estadual de Investigação do Narcotráfico (Denarc). Enfim, eles ingressaram no prédio – de acesso complicado mesmo para agentes experientes, principalmente à noite, por causa da arquitetura labiríntica e da presença de grupos de traficantes na região. Passava das 6h de sexta-feira, a área estava calma, e a maioria dos moradores levantava, sonolenta, com o barulho dos chutes na porta de madeira de um apartamento térreo, enquanto uma informante dos traficantes alardeava na esquina, por celular, a chegada da polícia. Com o mandado de busca e apreensão em mãos, os policiais entraram no ambiente escuro. Até que um grito veio do quarto:
– O que é isso?
Era uma garota de 15 anos. Ela estava sozinha em um imóvel onde um suspeito poderia estar escondendo drogas. Ele não foi localizado. O que fazer com a jovem, que poderia estar sendo usada pelos traficantes? A situação tende a deixar os policiais sem ação. Mas, naquela manhã, o delegado Mario Souza sacou um documento e começou a preenchê-lo, à medida que interrogava a jovem. Tratava-se de uma novidade usada pela polícia gaúcha no combate ao crack: o Relatório de Risco Social (RRS).
Em ações como a do Denarc, é comum os agentes toparem com mulheres grávidas, crianças, depen- dentes químicos e deficientes habitando o mesmo ambiente dos traficantes. Normalmente, com a prisão do criminoso, alguém acaba envolvido no tráfico, a mando do dono da boca ou por iniciativa própria, para tentar manter o sustento da família. E, nesses casos, mais cedo ou mais tarde, a polícia precisa voltar ao local para fazer novas prisões.
Ideia é facilitar a aproximação de outros órgãos, que auxiliariam na luta contra o crack
De tanto “enxugar gelo”, o delegado Heliomar Franco, diretor de investigação do Denarc, criou um projeto-piloto que tem visa a informar outras secretarias sobre o que encontra em locais às vezes acessíveis somente à polícia. A ideia é permitir que órgãos voltados ao acolhimento de crianças e adolescentes, à saúde e ao emprego, entre outros, possam se envolver e colaborar na luta contra as drogas – especialmente o crack. Assim, surgiu o RRS.
A nova forma de tratar o assunto mostra-se alinhada a recente pesquisa apresentada pela Fundação Oswaldo Cruz (leia ao lado).
– A gente não gostaria de voltar a alguns locais. Prendemos o traficante e deixamos lá alguém que vai assumir o lugar dele. O policial tem o olhar para identificar essa situação, e preenche o relatório. A direção avalia o risco social e encaminha a alguma secretaria do Estado. Esperamos que elas participem para que essas pessoas não sejam cooptadas pelo tráfico – explica o delegado, que espera testar um pouco mais a novidade antes de envolver outras secretarias no projeto.
Pesquisa propõe menos rigor
Se até o braço repressor do Estado tem buscado alternativas na guerra contra o crack, é possível concluir que a atual política não tem dado resultado. Com outro viés, na semana passada foi divulgada uma pesquisa sobre o perfil de usuários de crack no Brasil, feita pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
O estudo, que tem sido visto como prova de que o problema nasce das mazelas sociais, se tornou o bastião dos críticos das estratégias mais duras, como o tratamento compulsório.
– O principal achado é o perfil de exclusão social dos usuários. Isso é muito forte. A pesquisa esvazia o debate sobre internação compulsória – diz o secretário Nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano.
O estudo, porém, virou alvo da ira dos defensores da repressão. O número de usuários de estimado na pesquisa (370 mil nas capitais e no Distrito Federal) foi considerado baixo.
“Não temos a união de família. É cada um por si”
Há duas semanas e três dias internado, o microempresário de 34 anos, olhos azuis e cabelos loiros arrumados com gel diverge do estereótipo do viciado em crack, normalmente não branco. Mas uma característica o identifica com os demais usuários: a família desestabilizada.
A droga ocupou o vazio deixado pelo pai, internado em uma clínica geriátrica, por dois irmãos alcoólatras, outro irmão foragido e outro internado para tratamento do vício em crack.
– Não temos a união de família. É difícil ter na família um churrasco ou uma ceia de Natal agradável. É cada um por si – lamenta o microempresário.
Ao longo dos quatro primeiros anos de vício, manteve-se trabalhando – fumava até três vezes por semana, mas evitava quando tinha serviço. A postura contradiz a teoria do usuário “zumbi”, dominado pela droga e sem forças para se manter centrado em atividades que exijam maior dedicação.
– O usuário tende a se focar no hoje – diz o chefe da Unidade de Psiquiatria de Adição do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, psiquiatra Felix Kessler.