ARTIGOS
Paulo de Argollo Mendes*
O recente diagnóstico sobre os usuários de crack é tão definitivo e translúcido, que não há o que discutir: há 370 mil dependentes da droga nas 27 capitais, 37 mil estão nas capitais do Sul. A única reação possível e decente em um país que vem caçoando dessa epidemia é: e agora, presidente? Sabemos que não é uma pessoa que muda esse quadro, mas um conjunto bem identificado de gestores e níveis de organização do sistema de saúde que precisam (e urgente) implantar o que qualquer mãe ou o próprio usuário (afinal 80% dos dependentes declararam que querem se tratar) sabem. Tem de abrir vagas para desintoxicação e integrar os doentes à rede de cuidados, a ser reforçada e qualificada.
Vamos continuar a brincar com algo tão dilacerante, violento, dramático e que pode ser tratado? Quando a guerra é inevitável, precisamos ter estratégia e partir para a ação. Diante do crack e outras drogas, há inúmeros exemplos de países que reagiram. O Brasil até agora assiste ao horror que essa droga instala no seio de famílias. E um dado é revelador a um país com uma população jovem, que costuma ser apontada como um capital que sedimentará o futuro: 14% dos usuários identificados pela Fundação Oswaldo Cruz são crianças e adolescentes. Estamos perdendo uma geração, ou vamos estancar esta hemorragia social?
O que é mais incompreensível é que aparentemente há verbas para fazer algumas coisas. Mas nada aparece. Em 2011, foram anunciados R$ 4 bilhões para o programa Crack, é Possível Vencer. Segundo o próprio governo, foram gastos R$ 1,5 bilhão até agora. E nos perguntamos no quê? Consultórios de rua ou ambulatórios com limites no tratamento quando os pacientes estão muito debilitados? Adianta abordar essas vítimas da droga nas ruas se, caso o paciente aceite se tratar, não há onde interná-las? E, depois de fazer a desintoxicação, se for preciso um tratamento mais prolongado, por que predeterminar um prazo aos cuidados?
Nos casos de problemas de coração, rins, pulmão, o paciente é internado com data predefinida para sair? Transformaram a área de tratamento em dependência e psiquiatria (pois o uso de drogas – do álcool a crack, maconha, cocaína, gera outras complicações) em um palco para preconceitos e debates ideológicos estéreis.
Há 20 anos assinala-se uma compressão absurda da rede de cuidados no Rio Grande do Sul. Na Capital, foram fechados 70% dos leitos.
Não vemos nas ruas manifestações desses usuários ou de seus familiares para que os governos parem de discursar e arranjar desculpas ante a epidemia identificada pelas próprias autoridades há anos. As crianças e os jovens doentes não têm capacidade para reagir sozinhos. Mães estão ocupadas em acorrentar os seus para, em um ato bárbaro, protegê-los de si mesmos. Da mesma maneira que a presidente enfrenta com patriotismo e zelo a incômoda invasão da rede de espionagem norte-americana, deveria voltar seu olhar rigoroso e ciente às ruas, conversar com mães e alcançar o que necessitam. Não há mais tempo para titubear.*MÉDICO E PRESIDENTE DO SINDICATO MÉDICO DO RIO GRANDE DO SUL
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