ENTREVISTA. “O óxi não dá chance”. Denivaldo Kleper, técnico em redução de danos no Acre, um dos primeiros Estados a detectar a droga - MARCELO GONZATTO, zero hora 15/05/2011
O Rio Grande do Sul, um dos mais recentes Estados a detectar a chegada da nova droga chamada óxi, tem uma dura lição a aprender com a primeira região do país a testemunhar a devastação provocada pela mistura de cocaína, cal e querosene. No Acre, distante cerca de 4 mil quilômetros, o entorpecente mais barato e destrutivo do que o crack já faz vítimas, impulsiona a criminalidade e desafia os serviços de saúde há mais de uma década.
Confinado à Região Amazônica até poucos meses atrás, o óxi iniciou sua jornada rumo às demais regiões do país com a sanha de uma fera recém-saída da jaula. Inicialmente rumou para o Nordeste, para o Centro-Oeste, chegou ao Sudeste e, agora, mostra suas garras no extremo-sul do Brasil. Por onde passou, deixou como rastro vítimas sem dentes, desorientadas, com falência de órgãos ou mortas.
Em Rio Branco, a capital acreana, a droga mais feroz de que sem tem notícia mantém como reféns crianças, adultos, homens e mulheres de diferentes classes sociais. Conforme a gerência de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) voltado para o combate a álcool e drogas da cidade, o óxi é capaz de destruir a vida de um dependente em cerca de um mês. Danos gástricos, magreza extrema e descontrole psíquico são alguns dos sintomas mais brandos de quem chega em busca de auxílio.
Quem não tem condições nem mesmo de buscar ajuda por conta própria acaba sendo atendido por especialistas como o técnico em redução de danos Denivaldo Kleper, 35 anos. Responsável por planejar estratégias que diminuam o impacto da dependência química, Kleper conhece como poucos no Brasil o estrago feito pelo óxi no corpo e na vida de seus usuários.
Trabalhando com dependentes químicos há uma década e meia, desde antes da chegada da nova droga ao Brasil, ele confessa jamais ter visto algo igual à combinação mortífera da pedra de óxi. Ao monitorar dependentes nos locais de uso, ele relata na entrevista a seguir, concedida por telefone de Rio Branco, a degradação extrema provocada pela nova ameaça que cruzou o Brasil de um salto e chegou ao Rio Grande do Sul:
Zero Hora – Quanto o óxi é mais grave do que o crack?
Denivaldo Kleper – Em relação ao uso, a pessoa se vicia mais rápido e cada vez que fuma uma pedra quer fumar mais. As diferenças vão desde a composição, que inclui gasolina ou querosene e até solução de bateria. Por isso, chega a ser mais impactante do que o crack tanto no aspecto físico quanto no aspecto mental.
ZH – Que tipo de dano é mais comum?
Kleper – Há um emagrecimento muito rápido, diarreia instantânea...
ZH – Instantânea?
Kleper – Ao usar, dá dor de barriga, e o dependente defeca na hora. Vomita também. Defeca, vomita e, mesmo assim, continua fumando. A higiene (no local) onde se fuma é horrível. Eles pegam casas abandonadas e fazem de brete, como chamamos, para usar. Acompanhei dependentes nesses lugares. Há fezes e vômito para tudo que é lado. Eles não ligam para isso, só se importam em usar e não serem perturbados.
ZH – Qual o perfil de quem usa óxi no Acre hoje?
Kleper – Começou na periferia, mas hoje já está nas classes média e alta. Aqui nós não tivemos o crack, sempre foi o óxi. E daqui saiu para o Brasil. É que o custo de uma pedra de crack fica entre R$ 5 e R$ 10, e o óxi aqui custa apenas R$ 2. O dano social é igual ao do crack, a pessoa larga a família, vive na rua, assalta, furta para fazer uso. Tem muitos que vigiam motos na rua, conseguem R$ 2 e já saem para comprar.
ZH – Há muitos relatos de casos graves e mortes?
Kleper – Em 2003, começamos a fazer uma pesquisa na região da fronteira, que finalizamos em 2005. Depois de dois anos, voltamos a procurar as pessoas que havíamos entrevistado, e muitas delas já tinham morrido pelo uso do óxi. A nossa estimativa é de que a vida de um usuário frequente dura de um a dois anos.
ZH – Morre de quê?
Kleper – Ficam debilitados demais. A droga debilita o fígado, os rins, o estômago, sem falar no risco de infarto durante o uso, porque acelera demais o coração. Também perdem os dentes, emagrecem rapidamente e sofrem delírios de não falar coisa com coisa. Há um adoecimento mental muito rápido, e não conseguem mais organizar as ideias.
ZH – É muito difícil recuperar um dependente de óxi?
Kleper – É muito difícil por causa da abstinência. O usuário fica muito temperamental e está sujeito a criar situações de violência. Leva cinco, seis segundos para chegar ao barato, mas a sensação dura pouco, vai rápido. Aí querem usar mais, mais e mais. Quanto mais usa, mais quer. Por isso, o consumo e a dependência são muito mais graves, até em comparação ao crack. Por isso, trabalhamos com a ótica de redução de danos para que o usuário possa se reinserir socialmente e se recuperar física e mentalmente.
ZH – O senhor recorda de algum caso mais marcante?
Kleper – Acompanhei um rapaz que usava diariamente. Conseguimos fazer com que parasse por dois anos, agora voltou. Ele chegou a perder as digitais dos dedos, porque queimava as mãos com a droga ao fumar e esfregava os dedos no cimento para limpar. Tem também uma garota de 13 anos, que começou a usar com 11. Hoje fui buscá-la para levar ao Caps, e todos se surpreenderam com a debilidade física dela. Aqui já está chegando até nas crianças. Não tem mais idade ou classe social. O crack ainda te dá uma chance, o óxi é muito forte, não te dá chance. Não existe quem diga que fumou uma pedra e parou. Não existe isso.
ZH – Qual o impacto social no Acre em uma década de óxi?
Kleper – O impacto é muito grande. A massa, a população de periferia, já está em condição de vulnerabilidade e, quando começam a usar, ou vão traficar, ou roubar e furtar. Se é mulher ou travesti, vai se prostituir para conseguir meios de fazer uso. O desconhecimento da sociedade em relação à droga, mesmo aqui onde ela já existe há algum tempo, contribui para marginalizar o usuário.
ZH – Há leitos disponíveis para tratamento contra o óxi?
Kleper – Há setores de desintoxicação que funcionam nos hospitais de emergência e urgência. A pessoa vem em situação de uso abusivo e entra em um quadro agudo de intoxicação. Vai para o pronto socorro, desintoxica e vai para setor de leitos, onde fica até sete dias. Mas não é o suficiente. Muitos saem desse processo e voltam direto para o uso. O trabalho que fazemos na rua serve de porta de entrada para a rede de saúde. Agora, o Caps deve passar a abrir 24 horas para poder atender as pessoas em período de crise.
ZH – O senhor trabalha há 14 anos com redução de danos, antes mesmo da chegada do óxi. Já havia visto algo parecido?
Kleper – Trabalho com usuários de drogas há 14 anos e nunca vi nada parecido. Nem droga injetável, como heroína, ou LSD, cocaína, nada. É muito impactante. Em um, dois meses, já dá para ver a diferença no usuário, tanto física quanto mental. Nunca vi nada igual.
COMPROMETIMENTO DOS PODERES
As políticas de combate às drogas devem ser focadas em três objetivos específicos: preventivo (educação e comportamento); de tratamento e assistência das dependências (saúde pública) e de contenção (policial e judicial). Para aplicar estas políticas, defendemos campanhas educativas, políticas de prevenção, criação de Centros de Tratamento e Assistência da Dependência Química, e a integração dos aparatos de contenção e judiciais. A instalação de Conselhos Municipais de Entorpecentes estruturados em três comissões independentes (prevenção, tratamento e contenção) pode facilitar as unidades federativas na aplicação de políticas defensivas e de contenção ao consumo de tráfico de drogas.
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