COMPROMETIMENTO DOS PODERES

As políticas de combate às drogas devem ser focadas em três objetivos específicos: preventivo (educação e comportamento); de tratamento e assistência das dependências (saúde pública) e de contenção (policial e judicial). Para aplicar estas políticas, defendemos campanhas educativas, políticas de prevenção, criação de Centros de Tratamento e Assistência da Dependência Química, e a integração dos aparatos de contenção e judiciais. A instalação de Conselhos Municipais de Entorpecentes estruturados em três comissões independentes (prevenção, tratamento e contenção) pode facilitar as unidades federativas na aplicação de políticas defensivas e de contenção ao consumo de tráfico de drogas.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

PEREGRINOS DO CRACK


Repórter de ISTOÉ passa três dias na Cracolândia e mostra o cotidiano dos viciados que foram expulsos pela polícia e hoje vagam pela capital paulista. Rachel Costa - REVISTA ISTO É, N° Edição: 2201, 16.Jan.12 - 10:25

"Eu só vou deixar vocês registrarem isso porque quero que as pessoas vejam que a gente é humano." Após a advertência à equipe de ISTOÉ, Alemãozinho, 27 anos, acende o cachimbo em um hotel do centro de São Paulo que lhe custa R$ 5 a hora. O quarto é um espaço simples, com cerca de 15 metros quadrados. A pia faz as vezes de banheiro e o colchão da cama é coberto apenas por uma capa branca encardida pelo uso. Uma sacada precária dá vista para a rua dos Gusmões, no centro de São Paulo. Com as primeiras tragadas, vem uma fumaça densa e branca, de cheiro forte, que se mistura com o odor de mofo do ambiente. Em poucos segundos, a feição do jovem muda. Ele fica tenso, se levanta e começa a andar de um lado para outro, incomodado por um barulho que só ele ouve. Alguns minutos depois de apagar o cachimbo, se aquieta e volta ao normal. O cérebro doente e viciado na sensação de prazer do crack não lhe impõe mais limites: o que tiver de dinheiro vira “pedra”. “Já gastei R$ 5 mil em um fim de semana”, diz.

Alemãozinho é um dos usuários que frequentavam a região da Cracolândia, no centro de São Paulo. Com a operação policial iniciada em 3 de janeiro, os dois principais pontos de venda de crack que ali existiam (um sobrado na alameda Dino Bueno conhecido como “buraco” e o comércio de pedra da rua Helvétia) foram desmontados. Isso forçou as centenas de dependentes químicos que circulavam pelo local a se tornar peregrinos pelas ruas do centro da capital paulista.

Por dois dias, Alemãozinho se deixou acompanhar pela equipe de ISTOÉ. O apelido faz alusão à pele branca, ao cabelo castanho-claro e aos traços europeizados. Paranaense, ele veio para São Paulo há três anos para trabalhar como instalador de som. À época, já era dependente de crack. Sua história e rotina reforçam a inconsistência da estratégia adotada pelo governo de São Paulo de eleger a força como tônica para a intervenção. Com o início da operação policial, Alemãozinho, assim como centenas de dependentes de crack, mudou a rota, mas não largou o vício. Trocou a região da Luz pela de Campos Elíseos, onde tem encontrado a droga com facilidade na rua Apa, a dez quarteirões do ponto desmontado pela polícia. “Não tem essa de acabar com o crack não, moça. O traficante aparece onde o usuário está”, afirma ele, que diz querer parar, só não sabe como.

Ao caminhar pelo centro de São Paulo, é fácil confirmar a tese de Alemãozinho. Não se veem mais os grandes aglomerados com centenas de dependentes, que deram nome e fama à Cracolândia, mas há dezenas de grupos menores reunidos em torno de um cachimbo, muitas vezes, na cara da polícia. Nesse movimento de dispersão sobrou até para um cachorro, um rottweiler preto apelidado de Zé Negão, que se mudou para a porta da missão batista Cristolândia, onde usuários podem comer e ser encaminhados a centros de recuperação. Zé Negão morava no “buraco” e passava os dias cheirando fumaça de crack. Expulso do lugar, vive agora dias de abstinência e tem atacado até mesmo quem lhe dá comida. Se para o cão falta a droga, para as pessoas a realidade é bem diferente. Basta ter dinheiro para conseguir a “pedra”, que continua custando os R$ 10 de outrora.

Manter o vício é o desafio de cada dia de todo dependente químico. Comida e roupas se conseguem por doações, mas “pedra” só com dinheiro. Foi para bancar o vício que Alemãozinho virou michê. Ainda faz um bico ou outro como instalador de som nos fins de semana (quando ganha R$ 150 por dia de trabalho), mas confessa: “A droga atrapalhou muito os contatos.” Restando o corpo como ganha-pão, tem uma briga cotidiana para amainar os efeitos do crack, droga conhecida por consumir os viciados física e intelectualmente. Tem obsessão por escovar os dentes e, sempre que pode, come em restaurantes para não perder muito peso. Tem um predileto, na rua Jaguaribe, já na Vila Buarque (bairro de classe média), onde paga R$ 9,50 pelo prato de filé de frango com batatas fritas. Gosta de lá porque o tempero se parece com o da casa de sua mãe, uma contadora, que também deixou para trás, em Curitiba.

O resultado do esforço é que Alemãozinho foge à imagem clássica do usuário de “pedra” sujo, cadavérico, coberto por uma manta e arrastando-se feito um bicho pelas vielas soturnas do centro de São Paulo. Quando o encontramos pela primeira vez, recém-saído do banho, ele trajava calça branca, camisa de malha preta e tênis All Star marrom-escuro. “Eu tenho de estar bem-vestido, moça. Se minha aparência não estiver boa, não tem programa, e se não tem programa, não tem dinheiro para a pedra.”

Orgulho da vida que leva, ele não tem. Sente saudade dos três filhos que deixou no Sul com a ex-mulher, bancária, mas não pensa em voltar. Sua vida agora é ser michê para pagar o crack. Ganha de R$ 30 a R$ 80 por programa, mas mantém o sonho de vencer o vício e constituir nova família em São Paulo. Ele diz que já teve moto, carro, conta no banco, loja própria e apartamento. Agora só vive com uma mochila preta que leva às costas em suas andanças. Perdeu até os documentos. O mínimo de conforto que lhe restou é garantido por duas “coroas”, mulheres mais velhas que conheceu sendo michê.

Discreto, Alemãozinho evita as aglomerações das “bocas”. Opta por dormir em hotéis quando lhe sobra dinheiro. Conhece vários pela região da Luz e da Barra Funda, onde paga R$ 30 para ter colchão, roupa de cama limpa, café da manhã e intimidade para dar suas “baforadas”. Se não tem, fica pela rua mesmo. O policiamento reforçado dos últimos dias não lhe causa problema. Como bem lembra, é difícil a polícia mexer com ele, já que é branco e costuma estar de banho tomado e roupa trocada.

Já Carioca, um mulato de 39 anos, sem os dentes da frente, é uma das vítimas preferenciais das forças policiais. Indignado, ele mostra um machucado na perna direita. “Marca da botada que tomei no fim de semana de um polícia”, diz. Desde o início da operação policial, Carioca começou a andar com Mineiro, um negro de estatura mediana, 34 anos, aparência saudável e sorriso fácil. Mineiro saiu de Belo Horizonte há dois anos, depois que seu filho mais novo (hoje com 4 anos) o viu fumando crack na sala de casa. “Fiquei com vergonha e resolvi ir embora”, diz. Da família, guarda apenas a boa lembrança e os nomes dos três filhos do último casamento tatuados na mão esquerda.

Do mesmo modo que Alemãozinho, Mineiro e Carioca não gostam de “andar no fluxo” – definição para as aglomerações de viciados. Embalados por algumas “baforadas” e cachaça barata, a dupla sai para o “corre”. Um toma conta de um carrinho de supermercado, enquanto o outro abre, meticulosamente, os sacos pretos de lixo depositados em frente aos prédios de classe média do bairro de Santa Cecília. Por dia, percorrem um perímetro de cerca de dois quilômetros em torno da rua Apa em busca de latinhas e metal, que vendem a R$ 2,30 o quilo em um ferro-velho da região. O que conseguem, usam para o crack. “Eu trabalho pra fumar e só não paro porque não consigo”, afirma Carioca.

Parar com a droga é um desejo manifestado constantemente pelos usuários. Para Carioca, ia ser mais fácil se voltasse para o Rio de Janeiro “Mas tem de comprar a passagem e me pôr no ônibus, tia. Se der o dinheiro, vira tudo pedra”, admite. Mineiro não quer voltar. Em São Paulo, conheceu Patrícia, “a primeira namorada branca da sua vida”. Há três meses, com muita tosse e perdendo peso, ela foi internada em um hospital e descobriu ter tuberculose e HIV. Depois do diagnóstico, a moça voltou para a casa dos pais, deixando Mineiro sozinho na rua mais uma vez. E ele, que diz ter cursado três anos de teologia em Belo Horizonte, gasta agora seu tempo tentando desvendar o que considera um sinal de Deus. “Nunca usei camisinha com ela”, afirma. “Peguei meus exames hoje e não estou nem com tuberculose nem com HIV. O que isso quer dizer?”, pergunta ele, buscando com os olhos encontrar alguma esperança escondida entre as luzes das viaturas e a fumaça do cachimbo.


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